Naqueles dias em que o tempo tinha gosto de manga madura e o mundo ainda cabia no quintal da infância, meu pai — Tenente Lucena — me levava pela mão pelas ruas quentes do centro da cidade. Filho da terra, homem de honra, ele me conduzia não apenas por ruas calçadas, mas por veredas de memória e poesia.
Foi assim que conheci Zé da Luz. A casa era simples, com uma rede cansada no alpendre e um cheiro bom de café passado no coador de pano. O poeta nos recebeu com aquele sorriso que vinha de dentro — um riso moleque, de quem já havia rimado até as tristezas.
Conversavam como velhos companheiros. Falavam de Itabaiana, política, de gente da terra, de causos antigos. Mas quando Zé pegou o Brazí Caboco no colo — sim, no colo, como se fosse um neto — tudo silenciou. E então começou a recitar, como quem desfia um rosário de alegrias sertanejas, paixões malandras e sabedorias de feira:
“Vá no oitão das tepéra
Onde a dô e o luto mora,
Abra o currá da mizéra
E bote a fome pra fóra!”
Ali, entre os versos que denunciavam a miséria e exaltavam o riso, aprendi que a poesia de Zé era faca e flor: cortava e curava. Meu pai ouvia com respeito. Não o respeito frio dos quartéis, mas aquele reverente, de quem sabe que diante de si há um mestre da palavra. E eu, menino ainda, sentia que ali — entre uma estrofe e outra — morava algo sagrado. A poesia, sim. Mas também a memória. A identidade. A alma do Brasil que Zé chamava de caboco, e que eu começava a entender como meu.
Foi quando, do nada, ele emendou um verso dos seus, com jeito de safadeza santa e sabedoria do mato:
“Três muié ou três irmã,
três cachôrra da mulesta,
eu vi num dia de festa,
no lugar Puxinanã.”
Meu pai engoliu o riso, e eu, menino, fiquei sem saber se aquilo era pecado ou poesia.
Mas Zé apenas balançou em silêncio, como se dissesse:
“Menino, há coisas que só o coração do matuto entende… e não se explica.”
Hoje, tantos anos depois, ainda escuto aquele som de voz pausada e riso no canto da boca. Ainda vejo meu pai olhando o poeta com admiração silenciosa. E ainda sinto que foi naquela manhã, entre uma rede que rangia e um café que perfumava o ar, que aprendi a escutar a beleza do mundo com os ouvidos da alma — mesmo quando ela vinha travessa, danada e poética… no rastro imaginado das três cachorras da mulesta. Ogusta, Guléimina e Maroca — nomes que ficaram guardados num canto secreto da memória, despertando, sem pressa, os primeiros calafrios da minha inocente e doce confusão juvenil.
Por Palmarí H. de Lucena