Meandros da desigualdade

Corações, peixes, dados, abstrações geométricas em cimento. Objetos fabricados com pigmentações de cores da terra, empilhados, artisticamente desorganizados. Mostruário à céu aberto, muro da pequena loja de material de construção. Desafiando a falta de imaginação, a pobreza de detalhes e o imediatismo da construção civil, a criatividade de um pequeno empreendedor. Estávamos na era do minimalismo eufórico, sem traços ou pretensões de lembranças duradouras. Abrindo espaços, fechando espaços, sem nenhuma consideração pelas comunidades horizontais removidas para lugares distantes. Palácios e guetos igualmente verticalizados, espantalhos no horizonte.

Casebres modestos de famílias de pescadores. Progresso e status de cada habitante determinado pela presença de uma laje, pequenos veículos e a qualidade das cadeiras na porta de casa. Modesto quiosque anunciando a presença de um comércio de cerveja e galeto assado em um meio barril. Duas classes sociais compartilhavam o logradouro, separados por uma cerca virtual. Bicicletas, motos e carros precariamente operacionais estacionados no lado oposto de caminhonetes e carros de luxo. Máquinas possantes, importadas. Pessoas passavam sem olhar, outras olhavam os que passavam. Luta de classe microcósmica, silenciosa, sem uma apoteótica vitória ou derrota. Desabrigados eventualmente pelos argonautas da nova ordem urbana, prospectando seus minúsculos terrenos em busca do Velocino de Ouro. Futuro tão incerto quanto o mar turquesa que navegavam.

Bolsão de miséria e desigualdade crescente na margem oeste do rio poluído, cercado por uma pujante floresta de jatobás de concreto. Fronteiras vivas separando o lumpesinato ribeirinho dos seus vizinhos diferenciados. Distantes e mutuamente incômodos. Disparos de armas, sirenes de carros da policia e gritos perdidos na noite desafiando a paz, o conforto e a segurança adquiridos à preços exorbitantes. Tutelados pela verticalização das relações do poder público com o povo, os menos abastados serão removidos para outros lugares, longe do caudal do rio, que continuará navegando as incertezas dos meandros da modernidade.

Palmari H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores