Marcélia Cartaxo e a Magia de Pacarrete

Marcélia Cartaxo e a Magia de Pacarrete

Que grande atriz é Marcélia Cartaxo! Embora essa afirmação não seja novidade, seu talento se destacou desde sua estreia no cinema com “A Hora da Estrela” (1985), que lhe rendeu o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim. Agora, mais de três décadas depois, Marcélia ressurge em seu esplendor como Pacarrete, uma personagem tão fascinante quanto única.

Marcélia incorpora a personagem de tal forma que a torna absolutamente intrínseca a si mesma. Sua interpretação é marcada por uma voz alta e áspera, alternando com momentos de fraqueza devido ao pânico. Pacarrete é uma figura de raiva explosiva, que diverte pelo exagero e gestos largos. No entanto, ela também consegue ser adorável ao lado do amigo Miguel, com quem troca flertes descaradamente, e espirituosa ao lidar com inconvenientes, como na hilária sequência com um bêbado. Sua presença em cena é imponente, em contraste com seu corpo franzino, explorado na narrativa devido à sua história como bailarina.

Ao longo de 97 minutos, Marcélia transita por diversas transformações, construindo uma personagem única e inesquecível, que entra para a coletânea de grandes mulheres do cinema brasileiro. O elenco conta com João Miguel, de uma simpatia cativante, e Soia Lira como a empregada Maria, quase sempre às turras com Pacarrete. O trio, junto com Zezita Matos como a irmã Chiquinha, forma um núcleo riquíssimo em termos, expressões e dinâmicas, entretendo, surpreendendo e emocionando. Se Pacarrete é capaz de fazer rir com gosto, também pode arrancar lágrimas, e a delicadeza dessa alternância é mérito do diretor Allan Deberton.

Se a arte tem um valor inestimável, a sensibilidade de Marcélia Cartaxo o alcança. Vivendo a afrancesada professora e ex-bailarina Pacarrete, enclausurada em Russas (Ceará), ela dá vida e reverência à exuberância do teatro, apostando em brilho e glamour em meio a um cotidiano tacanho, incapaz de retribuir os esforços de uma ilustre cidadã interiorana.

Pacarrete ressurge quase 35 anos após o sucesso de Marcélia como Macabéa em “A Hora da Estrela”. Sob a direção do estreante Allan Deberton, Cartaxo estrela um filme multipremiado no Festival de Gramado, com oito troféus. O pano de fundo é a intenção de Pacarrete, vista como lunática pela sociedade local, de oferecer um presente nos 200 anos de Russas: uma apresentação de “balê” nos festejos populares organizados pela prefeitura. Almejando um horário nobre e o palco principal, Pacarrete flerta com a loucura, pois estamos em outros tempos, e pouco valem os tesouros que ela detém: fitas VHS, vinis e a atenção a programações de rádio.

Obcecada em provar sua importância, Pacarrete comete destemperos, humilhando quem, supostamente, estaria em condição ainda pior que a dela, como uma costureira e a aliada doméstica Maria (Soia Lira). Desagradável em muitos momentos, ela reserva suas delicadezas apenas para Miguel (o convincente João Miguel), testemunha da rebeldia da musa contra a imposição de uma cultura local rasa e descompassada com seus valores.

Pouco a pouco, o habilidoso roteiro coloca o espectador na posição de assimilar o exotismo da protagonista com um quê chapliniano. Numa coreografia dolorosa, o cineasta examina os fundamentos que norteiam a professora, aguerrida pela arte, que reivindica até a posse da calçada em frente à sua casa. Solidão e raiva ganham alicerces à medida que a personagem se afunda num cruel isolamento imposto pela sociedade. Antes, ela “podia tudo; tinha valor”; mas o peso da idade chega, e…? Tudo fica subentendido no belo filme de Allan Deberton.

“Pacarrete” é um retrato tocante e profundamente humano da luta de uma mulher contra o tempo e a indiferença da sociedade. A interpretação de Marcélia Cartaxo é brilhante, imbuindo a personagem de uma mistura de obstinação e vulnerabilidade que ressoa de maneira poderosa. Allan Deberton, em sua estreia na direção, demonstra uma sensibilidade notável ao equilibrar humor e tragédia, criando uma obra que celebra a arte e a resistência de seus devotos.

Palmarí H. de Lucena, 02 de julho de 2024

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