Marcas do tempo: memórias de um octogenário cheio de histórias

Marcas do tempo: memórias de um octogenário cheio de histórias

Nasci no dia 25 de julho de 1941, na cama da minha mãe, no Bairro de Jaguaribe, quebrando a hegemonia do meu irmão Piragibe e dando sequência a uma dinastia de irmãos e irmãs com nomes indígenas, bem brasileiros. Não sei exatamente como tudo aconteceu, porém tenho conhecimento de que vários músicos haviam feito escolhas semelhantes. Tínhamos Jacis, Peris, Tambatajas, Iapoiniras, formando uma tribo feliz, em que a música e os sons eram parte do sustento dos nossos pais, porém, na casa repleta de músicos e música, a maestra era Dona Neusa, nossa mãe, conduzindo a melodia, a harmonia e o ritmo das nossas vidas. Música Maestra!
            Percebi que havia me transformado em um octogenário quando alguém perguntou: “O senhor tem mais de 80 anos?” Respondi afirmativamente, e uma senhora apontou para a cabeça da fila, fazendo um gesto sutil indicando que eu era o mais idoso entre as pessoas esperando para serem atendidas. Ela revelou, timidamente, sua idade de 78 anos, como se fôssemos duas crianças escondendo algo imperceptível. Comentei que a idade é apenas um número e que o importante é como nos sentimos por dentro. No entanto, essa situação me fez refletir sobre todas as experiências que vivi ao longo dos meus oitenta e dois anos.
            Depois de uma certa idade, devemos despertar a criança que hiberna dentro de nós, devido às regras e preconceitos que associam comportamentos alegres ou divertidos a senilidade ou falta de discernimento, as chamadas deficiências da terceira idade. É preciso trazê-la à tona, estimulando a mente a pensar no novo, a experimentar o diferente e a arriscar-se no audaz, sempre que precisarmos dela para nos conscientizarmos e sermos nós mesmos, quando queremos.
            Lembro-me dos tempos de infância, brincando nas ruas de Jaguaribe com meus irmãos e irmãs, cercados de música e alegria. A banda de música do 15º R.I. era parte essencial de nossas vidas, e eu me sentia empolgado sempre que meu pai tocava os dobrados marciais. Recordo-me com carinho do corso e dos bailes de carnaval, onde dançávamos ao som do frevo “Vassourinhas”. Sentia-me como se todas as ruas fossem minhas, meu corpo de menino se movendo em harmonia com a música. À medida que crescemos, cada um de nós seguiu seu caminho. Alguns se tornaram músicos profissionais, assim como nosso pai; outros optaram por diferentes profissões, mas a paixão pela música sempre esteve presente em nossas vidas.
            Chegando aos oitenta e dois anos, percebo como o tempo passou rápido. As muitas rugas no meu rosto e as pequenas dores no meu corpo são marcas das memórias e experiências vividas. A sabedoria que adquiri ao longo dos anos é um tesouro que carrego comigo. No entanto, apesar de toda a nostalgia que essas lembranças trazem, também me sinto animado com o que ainda está por vir. A crise sanitária da Covid-19 nos fez enfrentar outros desafios, sentimentos de raiva e desempoderamento transformados em narrativas falsas repletas de hostilidade. No entanto, conseguimos sair desse turbilhão mais humanos, menos temerosos e com um espírito rejuvenescido, prontos para viver e apreciar os anos que ainda estão por vir.
            Então, sim, posso ser o mais idoso da fila, mas também sou o mais cheio de histórias para contar. E, enquanto houver vida em meu corpo e paixão em meu coração, continuarei a aproveitar cada momento e a construir novas lembranças para compartilhar. A idade pode ser apenas um número, mas as experiências que trazemos conosco moldam quem somos. E eu sou grato por ter vivido uma vida rica em música, amor e alegria.

Palmarí H de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores

Comentários

  • Vilma Almeida disse:

    Seu texto de hoje é no mínimo emocionante! Conheço sua família inclusive uma irmã sua foi minha aluna no Cursinho de Pré-vestibular! Dra. Iara (in memória), sua cunhada foi médica em Dona Inês/PB. Mas já tenho 78 anos e achei sua abordagem muito interessante e verdadeira! Somos sujeitos da História e se ainda estamos aqui coloquemos nossa experiência de vida na construção de um mundo melhor para todos nós!

  • Palmarí H. de Lucena disse:

    Obrigado pelo comentário

Deixe um comentário

Seu endereço de email não será revelado.