Lucy, o diamante na Terra

Photo by Palmarí de Lucena
Lucy, o diamante na Terra

O adolescente nos observava atentamente. Cronometrando a duração da caminhada do carro até o pé da escadaria do edifício. Olhos grandes, rápidos. Mostrando a vivência prematura de um trabalhador infantil. Aproximou-se sutilmente. Um pequeno puxão na manga da camisa, seguido de uma saudação coloquial e uma pergunta. “… Selam!… Do you speak English?…” Respondemos que sim. Estendeu sua mão direita, o braço esquerdo dobrado para trás. As costas da mão tocando a parte lombar da coluna. Um sinal de respeito. Apresentou-se como Afework. Explicou que seu nome significava, em Amárico, “… aquele que fala de coisas prazerosas…” Ofereceu seus serviços de guia, contador de historias. Acertaríamos depois seus honorários. O aperto de mão havia selado o acordo.

Subimos a escadaria juntos até o saguão principal do edifício. Estávamos no Museu Nacional de Arte da Etiópia. Explicou rapidamente o roteiro da visita. Começaríamos na coleção do primeiro andar: tronos, artefatos, esculturas, tabletes, roupas de todas as partes do país. Dois mil anos de história em menos de sessenta minutos. Seguimos para a galeria de arte moderna e tradicional, toda Etíope, no segundo andar. Uma coleção grande e de etnia diversificada. Caminhamos lado a lado, sem muita conversa, visitando todas as pinturas e esculturas. O guia não parecia confortável no millieu. Não perguntei, ele não disse porque. Uma pequena revelação no final da visita. Gostava um quadro chamado “Avó”, de um artista famoso da Etiópia. Não lembrava o nome. Descemos para o andar térreo.

Pediu que seguíssemos até a galeria do subsolo. Não havia muitos objetos ou artefatos naquele piso. Um pouco distante da entrada, um mostruário horizontal de madeira. O objeto de maior relevo, bem iluminado. Sem avisar, Afework segurou minha mão. Falou baixinho, como se estivesse prestes a contar um grande segredo. Era um convite para visitar “nossa mãe”. Apontou para a figura dentro do mostruário e, em seguida, para uma placa com a descrição do conteúdo. Molde em gesso da ossada de uma fêmea. Hominídeo com um pouco mais de noventa centímetros de altura e menos de 30 quilos de peso, descoberta em 1974 em Hadar, na Etiópia. Teria vivido entre 3,9 e 2,9 milhões de anos atrás. O mundo a conhece como “Lucy”. Chamada assim pelo arqueólogo Donald Johanson, seu descobridor. No momento do achado, ouvia uma canção dos Beatles chamada “Lucy in the Sky with Diamonds”.

Afework repetiu todas as informações da placa do mostruário. Fato após fato. Esclareceu que “Lucy” é conhecida na Etiópia como “Dinqinesh”, que significa “Vós arte maravilhosa”, em Amárico. A descoberta da ossada, 40% preservada, provou errada todas as teorias anteriores. Acreditava-se que nossos ancestrais só haviam começado a deambular em duas pernas, com o desenvolvimento do cérebro. Dinqinesh andava de pé, apesar do cérebro minúsculo. Maxilar, pélvis e pernas são humanas, sem nenhuma dúvida. A descoberta fez da Etiópia, o “Berço da Humanidade”. O lugar onde a raça humana tomou os primeiros passos da longa caminhada até o homo sapiens. Visita encerrada. Descemos a escadaria do museu. Entramos no jardim. Hora do ritual do café. Recapitulamos toda a visita. O guia estava feliz com seus honorários. Despedimo-nos. Um irmão mais velho correndo o mundo; outro, esperando crescer…

A Etiópia é um país que todo mundo conhece pelas tragédias da fome e da guerra. As crianças esquálidas, com o olhar distante de quem tem fome. Quase um milhão de pessoas havia morrido, no inicio da década de 80, antes do mundo tomar nota da imensidão da tragédia humanitária no interior do país. Vítimas da indiferença, do cinismo da guerra fria, da nossa falta de respeito com os descendentes de Dinqinesh, nossa mãe. Ela, a arte maravilhosa, o diamante que desvendou a história da nossa espécie.

Palmarí H. de Lucena, membro da Uniao Brasileira de Escritores

Etiópia 2005