Livro nosso de cada dia…

Despretensiosa ao ponto de ser austera, a biblioteca de Monteiro situava-se em uma esquina da rua principal, com vista privilegiada à praça e à igreja matriz. A pessoa que não lê, mal fala, mal ouve, mal vê – frase escrita na parede externa do prédio. Ali reencontramos Malba Tahan, ídolo literário da nossa geração e o autor das sábias palavras. Beduíno imaginário made in Brazil, viajamos juntos por terras árabes e persas, ziguezagueando entre fantasias e o mundo maravilhoso da ciência. O homem que calculava guiava seus pupilos até o oásis da sabedoria.

Encontramos uma pequena biblioteca pública, enquanto caminhávamos pelas ruas da cidade de Alagoa Grande. Bom lugar para acessar a internet. Sentamos próximo a dois pequenos grupos de adolescentes em mesas contíguas. Liam páginas de um livro em voz alta; uns tantos faziam observações ou escreviam notas em cadernos escolares. […] O senhor pode buscar algo na internet? Estudavam cultura popular, explicou nossa interlocutora, compartilhavam o único livro disponível. Ditos e provérbios, adivinhações, charadas, simpatias, cantigas de roda, queriam exemplos para o projeto, sem saber ou entender o significado exato de cada palavra ou atividade.

Estudantes sentados em semicírculo, ombro a ombro, no espaço entre os estandes da Primeira Feira do Livro de Jaboatão dos Montes Guararapes. Mosaico bonito das raças que conquistaram as alturas em que estávamos. Conversa com o autor do livro Nem aqui, nem ali, nem acolá, a última atividade de um dia cheio de expectativas e descobertas. Estavam entre os estudantes que haviam recebido 25 reais em cupons para comprar livros na feira. Duas mil crianças experimentando, muitos pela primeira vez, o prazer de escolher e comprar um livro, cortesia da prefeitura municipal.

[…] Como se escreve um livro? Pode falar de suas viagens? Quantos países já visitou? Já esteve em uma guerra? Tem alguma história engraçada no livro? […] Perguntas, perguntas e mais perguntas. Respondemos a todas, curiosidade imediata saciada. Conversamos um pouco mais sobre os temas apresentados. […] Gostaríamos que o senhor visitasse nossa escola para continuarmos a conversa […]. Queriam saber mais sobre o livro. Convite feito, convite aceito…

Semana seguinte, escreveu-nos o professor que acompanhou o grupo: […] a experiência de alguns alunos da Escola Municipal Poeta Castro Alves na feira literária foi o comentário da semana na escola, eles falaram para os outros amigos que tinham conhecido um autor de verdade, e queriam mostrar o livro, com a dedicatória. Falaram com algumas professoras que elas tinham que ler rápido para poder contar a eles as histórias, pois o autor […] iria vir aqui na escola e eles precisavam saber as histórias do livro. Estão todos super entusiasmados […]¨.

Viajamos de volta à sala de aula, ano de 1954. A placidez dos dias de ipês dourados e a beleza das palavras misturavam-se com os hormônios da adolescência. Boca manchada de batom, emoções incontroláveis espalhavam-se pelas rugas e veias da velhice desafiada; a professora recitava versos do Navio Negreiro de Castro Alves: o tópico do dia.

[…] Brinca o luar — dourada borboleta;

E as vagas após ele correm… cansam

Como turba de infantes inquieta…

Continuamos nossa viagem por mares que imaginávamos nunca dantes navegados. Agora é a nossa vez de capitanear a nave do saber, para que outros possam falar, ouvir e ver…