Lendo cartas que nunca escrevemos para um filho ou tentando lembrar-se das poucas recebidas dele, quase todas nunca entendidas completamente. Memórias distantes; ora bem afiadas pelo desejo de encontrar algo positivo nas junções de uma relação tumultuada, ora armazenadas no relicário das dores escondido na escuridão mais profunda de um cérebro. Viajamos por caminhos perigosos que havíamos percorrido juntos ou bem distantes. Aprendemos a navegar evitando as agruras e curvas da jornada, com a destreza de um ginete e a serenidade de pessoas que conhecem suas opções e riscos do percurso. A tabula rasa do perdão havia nos transformado, afeto silenciando as gralhas da cronologia do passado confuso, guiando-nos ao kairós das nossas vidas.
Pensamos sempre nos nossos pais, quando refletimos sobre os filhos. Procuramos pontos de luz, frases, truísmos e metáforas que ouvíamos ou que haviam norteado atitudes e conceitos que transferiríamos para a próxima geração. Eventualmente, alguns se perderiam na caminhada, outros seriam guardados como a verdade pura e a rota do destino inexorável. Substâncias no tubo de ensaio da vida, uma mistura perdendo suas características transformando-se em poções bem diferentes, mutações aquém ou além dos resultado esperados pelo alquimista. Estes seriam nossos filhos.
Três décadas haviam passado. Ouvíamos atentamente uma pergunta sobre nossa apresentação quando notamos de soslaio a presença de um homem de aparência sóbria. Tentando entregar um pequeno bilhete, sua atitude sugeria tratar-se de algo urgente. Cinco palavras: seu pai faleceu no Brasil. Palestra concluída. Nos tornaríamos uma adulto naquele momento, havíamos perdido nosso amigo de brincadeiras. E nossos filhos? Será que eles lembrarão das nossas preleções, exemplos, fracassos ou sucessos?
Comemoramos em silêncio os tempos e feitos do Tenente Lucena, nosso pai. Lembranças do aroma de comida com a beleza da ingenuidade musical. Meninos de rua, deficientes, folcloristas e artesãos habitavam nosso terraço como se fosse um terminal de integração. Mãos enormes e gorduchas voando pelos ares com a graça de colibris, mesmerizado pela magia do momento.. Casa do maestro, casa de todos. Aprendemos a servir ao próximo, presentes ou distantes, o legado.
Palmarí H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores