Enquanto o trem-bala Hikari se aproximava de Kyoto a 285 quilômetros por hora, minha memória tomava o rumo inverso, deslizando suave pelos trilhos do tempo até o inverno de 1969 — o ano em que conheci o Japão pela primeira vez.
Nos braços, eu carregava minha filha Michiko, um broto de apenas seis meses, adormecida com confiança entre o calor do meu corpo e a serenidade da paisagem. Caminhávamos juntos ao redor do Templo Dourado, envoltos por uma quietude que parecia suspender o mundo. A luz fria do inverno tocava os contornos dourados da estrutura como quem abençoa em silêncio, e o espelho d’água que o refletia guardava um segredo antigo — talvez o mesmo que ecoava dentro de mim. Chorei. Não de tristeza, mas de reverência. Era o encontro da beleza com a espiritualidade, do instante vivido com o tempo que ainda viria.
O silêncio era pleno. Apenas o rufar das folhas secas e os balbucios de Michiko preenchiam o ar — e esses sons, tão pequenos, tornaram-se música. Naquele instante, plantei uma raiz dentro de mim. Uma promessa íntima: que aquela vida nos meus braços cresceria como um pinheiro — firme, belo, duradouro.
Décadas depois, de volta ao mesmo país, cortando sua geografia com a velocidade do Hikari, percebo que os frutos daquela promessa floresceram. Entendo, enfim, que a viagem mais verdadeira não se mede em quilômetros, mas em lembranças que o coração cultiva. Algumas paisagens — como certas emoções — nunca nos deixam.
Partimos cedo de Tóquio, guiados por uma ansiedade tranquila — daquelas que anunciam um dia destinado à beleza. A primeira parada foi no Kinkakuji, o mesmo Templo Dourado de minha memória. Por quinhentos ienes, recebemos muito mais que um ingresso: ganhamos um instante suspenso entre o agora e o antes. Diante da arquitetura coberta de ouro e refletida nas águas imóveis do lago, compreendemos — mais uma vez — que o Japão não precisa dizer nada para dizer tudo. Ele apenas é.
Seguimos então para Arashiyama. Lá, a natureza se desenha com pincéis invisíveis. Caminhar pela Floresta de Bambu foi atravessar um corredor sagrado, onde os talos verdes, altos e solenes, sussurravam histórias ao vento. Nossos passos ressoavam como orações, e a luz dançava entre as folhas como quem borda o chão com silêncio e sombra.
O Templo Tenryuji nos acolheu em sua harmonia de pedra, musgo e lago. Cada curva do jardim parecia orquestrada por mãos ancestrais. Era uma beleza que não se impunha — apenas se revelava a quem soubesse escutar. E, ao cruzarmos a ponte Togetsukyo, com o rio correndo sob os pés e as montanhas bordadas de primavera ao fundo, sentimos uma alegria leve, quase infantil. Como se o tempo, por compaixão, nos concedesse um intervalo.
Ao cair da tarde, chegamos ao último santuário do dia: Fushimi Inari Taisha. A travessia sob os milhares de torii vermelhos era como caminhar pela espinha dorsal da alma japonesa. Cada passo entre lanternas e sombras era uma prece sem palavras, uma entrega. E ali, ao pé do primeiro grande torii, as lágrimas voltaram. Turistas passavam apressados, faziam selfies, escalavam as escadarias. Eu, não. Permaneci. A paisagem dissolveu-se, e por um breve instante, tudo era 1969 outra vez. A menina nos meus braços. O templo. O futuro em repouso.
Voltamos exaustos de um dia de intensa descoberta em Nara, mas inteiros — como quem não atravessou apenas uma cidade, mas um estado de espírito. Talvez seja esse o mistério do Japão: ele nos faz lembrar quem fomos, para que possamos entender melhor quem somos.
E, como se o dia ainda nos reservasse uma última revelação, decidimos visitar Gion, o bairro das gueixas. O sol descia devagar, dissolvendo-se em tons de âmbar e mel sobre os telhados de madeira escura. As lanternas acendiam-se uma a uma, discretas, como se cada luz guardasse um segredo antigo. As ruas de pedra, estreitas e silenciosas, sussurravam histórias de encontros breves e eternos — de uma beleza que se cultiva com disciplina, mistério e gentileza.
Avançávamos em silêncio, como se qualquer palavra fosse um desrespeito ao encanto. E então, entre sombras e reflexos, vislumbrei uma figura etérea: um passo breve, um quimono que flutuava como brisa, o rosto meio oculto por uma sombrinha. Talvez uma maiko, talvez apenas o fantasma delicado de um tempo que ali ainda habita. Não importa. O que ficou foi a sensação de ter tocado o invisível — e de que certos instantes são mais preciosos justamente por não poderem ser repetidos.
Ali, em Gion, compreendi que o Japão não é apenas paisagem ou cultura. É gesto contido, tempo medido, ausência que fala. É a arte de desaparecer — em beleza.
Palmarí H. de Lucena