Palavra nova penetrando intempestivamente no meu dicionário infantil: câncer. Dez anos de idade, cercado por um mundo adulto aterrorizado, constrangido, supersticioso e à mercê de um abutre maléfico que pairava sobre nossas vidas à espera de carcaças. Rádios, jornais e revistas falando timidamente sobre a saga daqueles escolhidos para uma morte certa, por um mal que desconhecia todas as convenções. Pessoas caminhando pelas ruas, marcados com data de expiração. Silêncio cúmplice, sepulcral. Ninguém ousava falar sobre o assunto na presença de pessoas vivendo em tempo emprestado. Adultos sussurrando meias palavras, truísmos e aforismos, quando conversavam sobre a doença nas nossas casas e lugares públicos. Pedra da Roseta humana criptografando perigos e medos, nossos ou deles, reais ou imaginários. Começo da década de cinquenta no cotidiano previsível da , avenida Capitão José Pessoa, no bairro de Jaguaribe.
Próximo, bem próximo a nós, uma tragédia se desenrolava: um médico, Napoleão Laureano, anunciando que padecia de câncer, declarando-se condenado pela medicina que o ajudara a salvar vidas. Transformando o perigo imbuído na precariedade da sua situação de saúde em uma oportunidade de promover uma companha em prol dos cancerosos do Brasil. A demora no diagnóstico, ressaltava, foi devido à falta de aparelhagem na Paraíba, o diagnóstico precoce aumentaria a perspectiva de cura, a primeira barreira a ser vencida.
Jornais mantendo a população informada sobre a estado de saúde do paciente hospitalizado no Rio de Janeiro, carecíamos de um centro de tratamento do câncer. Napoleão Laureano Faleceu no dia 31 de maio de 1951, longe da sua terra, provocando uma descarga emocional coletiva, o desenlace da tragédia penetrando os cantos mais longínquos da cidade. Cortejo fúnebre, massa humana ziguezagueando pelas ruas, corredeiras de lágrimas confluindo na praça do Cemitério Senhor da Boa Sentença. Unidas na dor e pela esperança solidária, pessoas de todas as classes sociais, caminhavam em reverência silenciosa. Último adeus ao médico mártir, que vivera e morrera por todos nós. O altruísmo corajoso do seu gesto e a força moral do seu apelo, persuadiram lideres políticos, a classe médica e a sociedade civil a se unirem para realizar sua desiderata: um centro de assistência hospitalar para os cancerosos.
Observamos a construção do nosocômio nas nossas idas e vindas de adolescente e jovem adulto, morávamos na vizinhança. Passagens rápidas, olhando discretamente de soslaio, a misteriosa doença ameaçava a todos nós. Medo infundado de contágio competia com os avanços científicos, óbitos continuando a dominar os noticiários. A gestação do sonho de Napoleão Laureano durou quase dez anos, hospital inaugurado em 1962.
Recebemos a notícia sobre o estado de saúde do nosso pai, Tenente Lucena, quase duas décadas depois da nossa última passagem pela rua do hospital, Jaguaribe tornara-se parte do nosso passado. Padecia de câncer de próstata, preconceitos sobre exame intrusivo havia eliminado a possibilidade de um diagnóstico precoce, a doença avançara sem controle. Prostatectomia radical seria a única alternativa. Possibilidade rejeitada enfaticamente pelas suas limitações pós-operatórias, anos de sofrimento seguiram. Vivendo em tempo emprestado, o câncer alastrando-se impiedosamente. Visitou-nos em Gana, passagem pela África seu grande e talvez o último dos seus sonhos. Faleceu no dia 9 de julho, quase trinta anos depois da abertura do Hospital Napoleão Laureano, a cem metros da casa onde vivíamos na Vila dos Motoristas.
Palmarí H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores