João e inocência perdida

Memórias e narrativas da infância estabelecem marcos ou pontos referenciais que nos acompanham vida afora. Família e lugares misturados formam a argamassa da vida, às vezes em camadas assimétricas, sem obedecer à lógica de uma estrada bem caminhada. Tradições, fantasias, duendes e os medos, companheiros de viagem, nos abandonam ao passar dos anos. Poucos permanecem vivos nos acostamentos estreitos das nossas memórias. Papafigo, lobisomem, doidos folclóricos e aparições do diabo nas lapinhas, um homem moreno vestido em terno de linho branco, deixando uma grande nuvem de fumaça com odor de enxofre ao partir. Preconceitos enrustidos nas narrativas do mundo adulto que nos cercava. Pessoas com hanseníase, com deficiências mentais ou físicas ou negras, eram fantasiadas como vetores do medo, assombrações que nos perturbavam nas noites mal dormidas. Grupo escolar, primeiro dia de aula. Fardamento novo, sapatos bem polidos e gravatas azul escuro, bordadas com as letras GTM. Ambiente alegre, cheio de expectativas. Gibis e botões de mesa trocados entre pares, novas amizades e rivalidades começando. Igualitarismo assegurado pelo uniforme padrão usado por alunos de escolas públicas. Menino negro chamado João, diziam ser filho de um carroceiro da Ilha do Bispo, seu uniforme parecia usado. Apresentava um rasgão no fundo das calças. Fato notado imediatamente. Pátio da escola, pelada de futebol sendo organizada. Equipes convocados de acordo com altura e a idade, várias substituições seriam feitas durante a partida para assegurar a participação de todos. João, o último a ser convocado, mostrou sua maestria no esporte quase imediatamente. Bola voando como um míssil entre as traves improvisadas. Goooooo!!!!…. Tínhamos nosso craque. O momento de fama de João durou pouco, seu surrado uniforme foi rasgado paulatinamente por um grupo de estudantes mais velhos, que o seguiram após o fim da partida. Lágrimas erodindo a superfície da pele lisa da sua face, pedindo ajuda entre gargalhadas e assobios. Foi o seu último dia na escola. Vítima da crueldade, indiferença ou medo. Todos éramos cúmplices. Nunca nos esquecemos da imagem atormentada do seu rosto – preconceito adulto em um mundo de crianças, transformado em uma assombração infantil durante a vida adulta.

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores