Foi numa brincadeira de escritório, em Manhattan, que o destino escolheu por mim: vendado, a ponta do dedo caiu sobre a Groenlândia. A viagem, porém, revelou-se impraticável. “E a Islândia?”, sugeriu alguém. “Fica ali perto.” Aceitei o acaso como bússola. Dias depois, desembarcava em Reykjavík, atraído por um misto de curiosidade, mitologia viking e o mistério de um lugar onde o sol do verão parece nunca descansar.
A primeira semana foi dedicada à capital. Reykjavík surpreende pela organização, arquitetura arrojada e atmosfera tranquila. Museus e galerias oferecem um mergulho na arte nórdica. É fácil flanar pelas ruas limpas e silenciosas. A cordialidade dos islandeses é discreta, mas constante. No pub do hotel, vazio num domingo à noite, conheci um americano frustrado: pesquisava o sistema prisional do país e, no fim de semana anterior, encontrou os presídios literalmente abertos — os detentos estavam em casa com a família. O garçom interrompeu: “Álcool? Só até as 22h. Exceto nas sextas e sábados.” Era domingo.
Na sexta-feira, tudo muda. Comecei o dia nas piscinas termais da cidade. Água a 40 graus. Ao meu lado, um senhor tranquilo aproveitava o sol. Era o presidente da república. Sem seguranças, sem pompa. Apenas mais um cidadão. Em seguida, um almoço com bacalhau fresco e taças de Chablis. Mais tarde, uma lista de bares e clubes em mãos — cortesia do americano do pub — e a noite começou.
Fiquei no primeiro bar. Rock frenético. Jovens altos e animados dançavam desajeitadamente. A bebida circulava como se fosse a última sexta-feira do mundo. Conheci Sigdur, a filha de Benedito. Dançamos até o fim da festa. Ofereci carona. Ela recusou com serenidade: “Não dirigimos quando bebemos.” Os carros ficam parados, chaves na ignição. Caminharíamos até sua casa, cinco quilômetros entre cantorias, grupos alegres e um sol incansável, alto no céu. Alguém pediu uma canção brasileira. Entoei “Você pensa que cachaça é água?” — e virou sucesso imediato.
Mas há mais Islândia além da excentricidade gentil de seus hábitos noturnos. Ali também repousa a origem de uma das instituições democráticas mais antigas do mundo: o Alþingi, o Parlamento dos Vikings, fundado em 930 d.C. no parque nacional de Þingvellir. Um campo aberto entre fendas geológicas, onde chefes de clãs e poetas oradores se reuniam para deliberar e resolver disputas — ao ar livre, diante do povo. É nesse mesmo solo que nasceram as sagas islandesas, obras-primas da literatura medieval que narram amores, exílios, batalhas e vinganças, revelando a alma crua e poética de um povo forjado pelo fogo dos vulcões e pelo silêncio dos invernos.
Na Islândia, descobri um país onde o verão é sem noite, a liberdade convive com a responsabilidade, e até os presídios confiam em seus presos. Um lugar pequeno, mas com lições grandiosas — onde gnomos são levados a sério, presidentes relaxam em piscinas públicas, e a democracia resiste há mais de mil anos, entre lavas, lendas e as luzes dançantes do céu. Porque se o sol da meia-noite surpreende, é no inverno que a Islândia revela seu segredo mais hipnótico: a aurora boreal, cortina verde e violeta que desliza silenciosa sobre as montanhas, lembrando-nos de que há beleza até no frio mais profundo.
Se você procura paisagens surreais e histórias que não se apagam com o tempo, vá. E vá preparado para rever certezas — ou perdê-las com gosto sob um céu que brilha duas vezes.
Por Palmarí H. de Lucena
- Versão original publicada no meu libro “Nem Aqui, Nem Alí, Nem Acolá