Nossa primeira experiência com conflitos tribais aconteceu no Norte de Gana, em 1981. A guerra entre os Konkombas e Nanumbas, mais de mil mortos, feridos e desabrigados, lavouras e propriedades destruídas. Promessas de progresso, equidade e democracia pós-colonial, perdidas no caos da intolerância e da suspeição. Disputas sobre plantios de inhame ou a ocupação de terras dos Nanumbas para plantar as tuberosas, era a razão principal para o enfrentamento entre as duas tribos. Não era o primeiro nem seria o último…
A urgência não nos permitiu uma analise mais profunda da “raison d’être” ou das consequências futuras do conflito. A proliferação de rumores substanciava argumentos, que potencializavam soluções violentas, acertos de contas e abusos contra os direitos humanos.
Surgiram dificuldades para transportar a ajuda. Protagonistas, demandavam pagamento de “impostos” em pedágios informais. Explicações e documentos não eram suficientes para permitir a livre passagem dos comboios. Conflitos armados entre as tribos ou membros da mesma tribo, eliminavam qualquer possibilidade de criar “corredores humanitários”. A certeza da entrega dos mantimentos e remédios, só aconteceria após o retorno dos caminhões, dirigidos por motoristas de tribos não envolvidas na disputa.
Nana Adjei esperava-nos no escritório. Gestos nervosos, ansiedade estampada no rosto, ombros arqueados. Postura atípica para um homem acostumado a dirigir-se a outras pessoas como um “nana”, um chefe tribal Krobo. Dorso da mão direita tocando repetidamente na palma da mão esquerda, pedindo nossa atenção, gesto usado por suplicantes. Chefe dos caminhoneiros, a visita era para nos informar sobre uma tragédia. Carga com quarenta toneladas de alimentos, capturada e vandalizada por homens Nanumbas. “O motorista foi morto por uma flecha envenenada com bílis de crocodilo”, alegou. Pediu que dispensássemos a companhia de qualquer indenização, nem o caminhão, motorista ou a carga estavam cobertos com seguro de risco de guerra.
Teríamos que reembolsar trinta e quatro mil dólares ao doador, segundo o programa de ajuda humanitária americana. Entendiam a complexidade da situação, porém sem dispensar a indenização. Propôs que entrássemos com uma ação contra o transportador e o governo ganense. Impossível de concluir uma investigação para estabelecer a culpabilidade pela perda. Nossa única testemunha, o motorista, havia sido assassinado, justificamos. “Flecha com bílis de crocodilo na ponta, morte instantânea…”, o funcionário repetiu várias vezes, incredulidade nos olhos. Retirou-se da sala. Voltou minutos depois com um comunicado. Preocupados com a segurança da comunidade americana no país, queriam investigar a possibilidade de protegê-los contra o até então desconhecido veneno.
Comunicaram que haviam decidido dispensar o pagamento, por razões humanitárias, duas semanas depois. Desculparam-se por não enviar flores à viúva, visto que, na verdade, eram três…
Partíamos de Gana. Deparamo-nos com uma delegação de ganeses, vestidos em trajes tribais no saguão do aeroporto. Com os braços abertos e um sorriso amplo na face, um homem aproximou-se. Aparentava ser o líder do grupo. Estávamos novamente diante de Nana Adjei, o chefe dos caminhoneiros. Queriam despedir-se. Servindo libações e presenteando-nos com objetos tradicionais, dignos de alguém do nosso status, um nana honorário, “entronado” recentemente por serviços prestados ao país.
Discurso de despedida. Agradecimentos profusos pela ajuda prestada durante a guerra no Norte. Lamentamos a morte do motorista e a perda do caminhão. Estavam surpresos e gratos por termos aceitado a estória, confidenciou-nos o chefe. O motorista havia “ressuscitado” meses depois, com uma nova esposa da tribo acusada de matá-lo.
Seguimos conjecturando sobre a origem do dinheiro para o significativo pagamento do dote a família da nova esposa. Os inhames foram substituídos por uma galinha guiné nos anos noventa, como o ponto de conflito entre as tribos, na famosa “guerra das pintadas”…
Gana 1981