Ícone, rosas e bossa nova…

Competindo com caminhões, carros e máquinas agrícolas. Seguindo a estrada pavimentada, sem poder checar os nomes escritos em alfabeto cirílico. Perdemo-nos várias vezes, após consultar com pessoas ao longo da estrada. Os búlgaros inclinam a cabeça quando querem dizer “não” e balançam para as laterais quando querem dizer “sim”. Repetindo sempre a expressão “varvete naprovo!”, vá direto, como se não houvesse curvas no país. Cinco horas na direção errada. Policial nos explicou com gestos manuais, que devíamos seguir rumo ao Leste na rodovia E-80. Estávamos a sete horas Oeste de Sofia, nossa destinação.

Chegamos à porta do Balkan Hotel às três horas da manhã. Estrutura e mobiliário antigo. Aroma de tabaco forte, cigarros russos, agredindo as narinas. Decadência alimentada por ácaros. Recepcionista sonolento completou as formalidades do check-in. Entregou-nos displicentemente uma chave antiga, chaveiro de bronze, enorme, convocando três babushkas, com uma campainha. Acompanharam-nos ao quarto. Lembramos delas limpando o banheiro e fazendo a cama pausadamente. Terminaram em uma hora. “Blagodaria”, despedindo-se sem grande entusiasmo.

Explicamos nosso itinerário turístico. Começando em Sofia. Catedral Alexander Nevski, a maior catedral ortodoxa dos Bálcãs. Coro de cantores de ópera e coleção espetacular de ícones búlgaros. O Teatro Nacional Ivan Vazov, em seguida. Expressamos interesse na soprano búlgara Ghena Dimitrova. Famosa com seus papéis de Turandot de Puccini e Abigail em “Nabucco” de Verdi. Todas as cabeças balançando lateralmente, entusiasmados. Ópera era paixão nacional. O baixo Nicolai Ghiaurov, o astro búlgaro da ópera, era considerado o novo ícone nacional, um astro do proletariado.

Notamos que um homem nos seguia. Alcançou-nos quando paramos para descansar. Trajando modestamente, com o porte e os olhos de uma pessoa culta, diferenciada. Falando em Inglês fluente, apresentou-se como Hassan. Muçulmano ou “pomak”, pejorativo usado pela maioria cristã ortodoxa. Discriminados, como se fossem “ciganos”, “vagabundos ou ladrões”. Ofereceu seus serviços como guia turístico. Dizia-se microempresário. Coletava laminas de barbear descartadas por hospedes e as vendia como novas, depois de afiadas. Sugeriu uma doação…

Depois de uma noite inesquecível na Ópera, seguimos para Plovdiv, possivelmente a cidade mais formosa da Bulgária. Chamada de Eumolpia trácia, a Filipópolis antiga, a Trimontium romana, a Felibe turca ou a Plovdiv búlgara, no decorrer de sua dramática história. Ponto de convergência das rotas da Ásia Menor para Europa e do Centro da Ásia para Grécia. Show case dos ódios e as intrigas dos Bálcãs.

Seguimos para Kanzalak, o lugar que os búlgaros chamam de “Rozova dolina”, o Vale das Rosas. Primeira semana de junho, a colheita de rosa damascena havia começado ao raiar do dia. Trabalho intensivo. Necessitavam de cinco toneladas de pétalas para produzir um litro de óleo essencial, o mais fino e caro do mundo. O aroma de rosa estava na natureza, nos ambientes e nas pessoas. Festas, festas e mais festas. Hassan participava da colheita com grande entusiasmo. Boa ocasião para vender lâminas de barbear…

Passamos nossa ultima noite em Ruse, cidade fronteiriça da Bulgária à margem direita do Rio Danúbio. Localizado em um pomar de cerejas, um pequeno hotel. Informaram-nos que tinham música ao vivo. Quarteto de jazz, na boate do hotel – de quarta a sexta-feira. Esperamos pacientemente enquanto afinavam os instrumentos. Subitamente, começaram tocando com a energia de uma casa cheia. Concerto de música brasileira, encerrado com “Saudade da Bahia”, a favorita da banda. Caymmi cantado em búlgaro não fazia muito sentido. Sentíamos “dentro do peito” uma saudade genuinamente brasileira. Rosas, rosas e rosas. De abril ou de junho. Todas…

Bulgária 1973