A estrada era uma mistura constante de desafios e fascínios. Competíamos com caminhões pesados, máquinas agrícolas imensas e carros locais que seguiam rotas quase invisíveis. Enquanto cruzávamos o pavimento esburacado, nos sentíamos perdidos em um mar de sinais escritos em cirílico, impossíveis de decifrar. Parávamos com frequência, buscando ajuda de moradores simpáticos, mas logo enfrentávamos a peculiaridade búlgara: a inclinação da cabeça para dizer “não” e o balançar lateral para o “sim”. Era como se o país fosse uma terra de enigmas, com as palavras “varvete naprovo!” repetidas infinitamente — siga em frente, como se curvas não existissem.
Após horas seguindo na direção errada, encontramos um policial que, com gestos calmos e precisos, nos indicou o caminho correto: rumo ao Leste, pela rodovia E-80. Estávamos, de fato, a sete horas a Oeste de Sofia, nosso destino. Chegamos ao Balkan Hotel já de madrugada. O edifício, marcado pelo tempo, exalava o odor forte de cigarros russos, impregnado em cada tecido, e o desgaste estava visível nas paredes e nos móveis antigos. Um recepcionista sonolento, mais interessado em terminar seu turno do que em nos atender, completou o check-in com uma formalidade quase mecânica, entregando uma chave de bronze que poderia ter saído de um hotel de outro século.
As três babushkas que ele convocou com um toque de campainha nos seguiram ao quarto, realizando uma limpeza meticulosa, quase ritualística. Parecia que o tempo tinha desacelerado ali. Ao final, uma despedida breve e sem emoção: “Blagodaria”, sem brilho nos olhos, mas com uma sensação de missão cumprida.
Nos dias seguintes, exploramos Sofia, começando pela majestosa Catedral Alexander Nevski. O imenso coro de cantores de ópera preenchia o espaço com vozes que ressoavam pela alma, enquanto a coleção de ícones búlgaros nos transportava por séculos de fé e arte. Seguimos ao Teatro Nacional Ivan Vazov, onde mencionamos nosso interesse pela soprano Ghena Dimitrova. Ao ouvir seu nome, os olhos dos locais brilharam — ópera era mais que arte, era identidade nacional. Não havia dúvida: Ghena e Nicolai Ghiaurov, o baixo que se tornara o novo símbolo do orgulho operístico, eram astros de uma nação que ainda reverenciava suas raízes culturais proletárias.
Mas a viagem, como sempre, trouxe surpresas. Um homem nos seguia. Chamava-se Hassan, um “pomak”, termo depreciativo para os muçulmanos locais. Discriminado como tantos outros, ofereceu seus serviços como guia. Apesar do contexto delicado de sua identidade, seu conhecimento e carisma eram evidentes. Entre explicações culturais e sua inusitada “microempresa” de coletar lâminas de barbear, Hassan nos acompanhou em uma aventura que o levou até as colheitas do Vale das Rosas. Ali, em meio ao perfume inebriante das rosas damascenas, que requeria toneladas de pétalas para produzir um singelo litro de óleo, Hassan se tornava parte do folclore da viagem, sempre vendendo lâminas enquanto colhia rosas.
Nossa jornada terminou em Ruse, à beira do majestoso Danúbio. Um hotel modesto em meio a cerejeiras nos prometia música ao vivo. Um quarteto de jazz animava a boate vazia com uma energia que contrastava com o cenário, encerrando com uma inesperada versão de “Saudade da Bahia”. Caymmi, cantado em búlgaro, parecia deslocado, mas ainda assim, algo em sua melodia trazia saudade. Uma saudade que não era só nossa, mas de todos aqueles que, mesmo distantes, encontram nas rosas búlgaras ou nas canções brasileiras um eco de suas próprias raízes.
Palmarí H. de Lucena – Bulgária 1973