Hemingway comeu aqui

Sentaram-nos prontamente em uma mesa de três, jantar em família. Ambiente alegre. Sentíamo-nos imunes ao barulho das gargalhadas dos clientes. Vapores de Rioja alto escapando dos hálitos do mais inebriados. Nossa primeira noite em Madri. Nada nos distraia, nem mesmo o ruído metálico e sutil de talheres destrinchando generosas porções de leitão assado. Estávamos no andar superior do Restaurante Botín. Turistas sentados à mesa próxima a nossa. Casal português e um amigo brasileiro. Voz alta, sotaque do interior paulista bombardeando os demais com platitudes sobre filosofia antiga, neurônios, a Bíblia e as belezas de Madri.

Após revelar entusiasticamente, a “Puerta del Sol” é um lugar maravilhoso, o brasileiro mudou de assunto repentinamente, dicas e mais dica sobre “rebajas”, promoções, nas lojas da área. Aspirante a Homem da Renascença. Notaram que éramos brasileiros. Conversa miúda sobre estados e cidade de origem, geografia de turista brasileiro. Ah, mais uma dica, comentou com um piscar de olho, as bolsas da Louis Vitton estão baratíssimas… Música alegre próximo à escadaria, tínhamos a companhia de uma agrupação musical, uma tuna universitária. Guitarras, aludes e pandeiros. Apareceram no lado oposto da sala. Vozes firmes, afinadas, cantavam o refrão de Guadalajara, Guadalajara, canção popularizada pelo mundo afora por grupos de mariachis mexicanos. Versão estilo rumba catalã de Tico Tico no Fubá, na sequencia. Resposta entusiástica da audiência. Cesta de vime recheada de notas de 10 e 20 Euros sugerindo propinas, diminuiu o entusiasmo dos nossos vizinhos. Concluíram com uma canção espanhola: Valencia, cantada por um dueto de estudantes de medicina, ambos africanos. Scott Fitzgerald, James A. Michener, Graham Greene e Ernest Hemingway estiveram aqui, comentou o maître casualmente enquanto discutíamos nossas opções gastronômicas. Chegamos a um consenso, escolhemos o cardápio prix-fixe noventa e cinco reais por pessoa: cesta de pães, sopa de grão de bico, leitãozinho assado, sobremesa e meia garrafa de vinho Rioja. O homem fez um pequeno som de satisfação e partiu em direção a cozinha. Próximo ao final do livro O Sol também se levanta de Ernest Hemingway, os personagens Brett e Jake desfrutavam uma refeição no restaurante. Reações típicas de qualquer visitante.Almoçamosno andar de cima do Botin. É um dos melhores restaurantes do mundo. Comemos leitão assado e bebemos Ríoja alta. Brett não comeu muito. Nunca comia muito. Eu comi pra valer e bebi três garrafas de Ríoja alta. Decidiram partir, a narrativa continua: No fim da escada, saímos para a rua pela sala de jantar do primeiro piso. Um empregado foi buscar um táxi […] em um pequeno largo arborizado e arrelvado… Terminamos a refeição. Não havíamos comido ou bebido tanto como o Jake, mas sentíamos a necessidade de explorar as ruas e praças da área. Aparentemente, todos os bares da Cale Cuchilleros anunciam a presença oficial de Hemingway e outras celebridades, até o cantor Nelson Ned do Brasil. Só o Botín oferece comprovação através de artigos e os livros dos seus ilustres frequentadores. Vizinho ao Botín, o Restaurante El Coche, anuncia em letras garrafais na entrada: HEMINGWAY NUNCA COMEU AQUI. Outros comeram… Rumamos em direção a Calle Cava Baja. Noite clara de verão nos motivava a caminhar pelas calçadas estreitas. Forçados após caminhar cem metros a procurar abrigo, entramos em um lugar que nos chamou a atenção: Posada de la Villa, construída originalmente em 1642 e restaurada como um restaurante em 1980. Madeira, pedra e vitrais criam um ambiente luxuoso sem exagero ou pretensão de grandeza. Não registram nenhum texto literário sobre o local, só os nomes de celebridades que por ali passaram em discretas placas de bronze. Logo descobrimos que Janet Jackson havia usadas umas das cadeiras na nossa mesa. Teríamos preferido uma mesa com manchas de vinho Ríoja alta. HEMINGWAY TOMOU UM PORRE AQUI! Voltamos no dia seguinte, um jantar inesquecível… Palmari H de Lucena é membro da UBE