Haiti em tempos de cólera…

Quando pensávamos que todas as misérias possíveis ou imagináveis já haviam atormentado o povo do Haiti, nos deparamos agora com uma epidemia de cólera. O desgoverno e a pobreza do estado haitiano aumentam em cada crise.

Ironicamente, os maiores beneficiários da democracia são mais de dois milhões de haitianos que votaram com os pés. Navegando águas traiçoeiras do Estreito da Florida, muitos optaram por trabalhar em condições precárias no mundo subterrâneo da emigração ilegal nos Estados Unidos, Canadá e na Republica Dominicana. A diáspora remete à sua terra natal, mais de um bilhão de dólares, representando ¼ do Produto Interno Bruto (PIB), evitando assim o colapso total da economia haitiana.

Trabalhamos por mais de doze anos em projetos financiados pela comunidade internacional. Programas de reconstrução pós-desastre ou para a redemocratização, todos apoiados por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU. Muitos deles sucederam. Desde 2003, outras missões seguiram…

O terremoto de 2010 renovou o interesse da comunidade internacional, que atravessava um caso sério de fadiga de compaixão, deixando o destino do Haiti à deriva nas águas do Caribe. Lâmpada do gênio aberta. A calamidade confinou um milhão e quinhentos mil haitianos na pobreza, vivendo em acampamentos precários, em condições de saúde e higiene deploráveis. Expostos aos caprichos da natureza, aterrorizados por gangues e vulneráveis a doenças epidêmicas

Haiti proclamou sua independência no dia primeiro de janeiro de 1804. Transformou-se assim no primeiro estado independente da America Latina e no primeiro governado por negros no mundo – produto de uma rebelião de escravos contra a colonização francesa. Quase três décadas depois, a nova nação tomou medidas preventivas para evitar que a propagação da cólera originária dos Estados Unidos e da Europa, entrasse no país através dos seus portos. Durante o século XIX, um dos poucos países da região a não apresentar surtos da doença. Escapando ileso de seis pandemias que afetaram o mundo na década de noventa, em estado de caos político quase permanente, empobrecimento continuado e desastres naturais devastadores…

Pequeno surto de cólera em uma província espalhou-se rapidamente, resultando em quase 1.000 mortos e 20.000 infectados. Clínicas e hospitais operam além da capacidade desde antes do terremoto. Autoridades sanitárias estimam que a doença poderia afetar eventualmente a 270.000 pessoas.

Dedos acusatórios apontam em todas as direções, lendas urbanas e suspeição movem rapidamente, antecipando-se às soluções para o problema. O “bicho papão” preferencial do momento, são a base e as tropas da ONU, originários do Nepal. A doença é endêmica naquele país, que experimentou um surto antes do embarque das tropas. A variedade do vírus é asiática, o que reforça a percepção. Demonstrações contras as tropas da ONU, especialmente as do Nepal, aumentam dia-a-dia. As tropas brasileiras também não estão isentas…

A Gazeta de Notícias reportou no dia 14 de novembro de 1904, uma situação caótica no Rio de Janeiro. “Tiros, gritaria, engarrafamento de trânsito, comércio fechado, transporte público assaltado e queimado, lampiões quebrados a pedradas, destruição de fachadas dos edifícios públicos e privados, árvores derrubadas: o povo do Rio de Janeiro se revolta contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz”.

A situação descrita na Gazeta de Notícias, nos leva ao Haiti do momento. A fragilidade e os perigos da situação são reais e constituem ameaças constantes. Bastaria substituir as últimas dezenove palavras do texto do jornal brasileiro por: “o povo de Port-au-Prince se revolta contra o projeto de combate à cólera e à Missão das Nações Unidas”, para chegarmos ao provável desenlace para o caos e a pobreza haitiana.

Osvaldo Cruz teve sucesso eventualmente. E o Haiti em tempos de cólera?