O plano era simples: visitar o museu da Fundação Miró, descer pela Rambla, contemplar as obras de Gaudí e, ao entardecer, ver as fontes mágicas de Montjuïc. Mas Barcelona, como toda cidade viva, tem seus próprios caprichos. Pedimos ao concierge um táxi. Quinze minutos depois, na recepção do hotel, surge Alberto.
“Hola, mi nombre es Alberto”, anunciou com sotaque castelhano e entusiasmo catalão. Jovem, trajava-se num prêt-à-porter globalizado, cabelo num híbrido entre moicano e rasta, dedos carregados de anéis de prata. Parecia um cigano estilizado, desses que misturam liberdade estética com intenções sinceras. O carro, limpo e moderno, destoava do visual do motorista.
Seguimos em direção ao alto de Montjuïc, onde a vista do porto e do bairro gótico se abria como um quadro vivo. A estátua de Colombo apontava ao leste. “¡Tierra!” — ironizou Alberto. “Mas as Américas estão no oeste. Colombo era estrangeiro, de Gênova.” O museu Miró, fechado. Alberto sugeriu um plano B — um tour de três horas pelas sete obras de Antoni Gaudí reconhecidas pela Unesco. Deveríamos começar pela Sagrada Família, seguir ao Parque Güell e à famosa La Pedrera. Encerraríamos o passeio na Barceloneta, onde o Mediterrâneo beijava a cidade, e os preços ainda eram gentis.
Entre curvas e histórias, Alberto revelava outra paixão: futebol. Sonhava com a conquista da Copa do Mundo na África do Sul. “La Fúria” carregava oito jogadores do Barcelona, orgulho catalão. Estranhava, no entanto, a ausência de Ronaldinho Gaúcho — “catalão honorário”, como dizia — da seleção brasileira.
Mas o tom mudava quando o assunto era Gaudí.
“Não era só arquiteto”, disse, “era místico, político, um profeta da pedra.” Explicou que Gaudí via a natureza como modelo absoluto: torres que crescem como árvores, fachadas que respiram, colunas que se sustentam como ossos. Suas obras se erguem sozinhas, sem suportes — como a dignidade do homem humilde.
E então, Alberto revelou o Gaudí militante. Protagonista da Renaixença catalã, movimento que buscava reavivar a identidade suprimida pela centralização castelhana. A Sagrada Família, explicou, era mais que um templo — era um grito de fé dos pobres, financiado por doações de gente simples, que nem podia entrar na catedral. Gaudí vivia entre eles. Escolheu morrer como eles.
No Parque Güell, um guia oficial se aproximou, ouvindo as falas de Alberto com atenção crítica. Trocaram brochuras, argumentos. Embate cordial. Mas bastou uma menção às gárgulas e aos bancos ondulantes para que Alberto retomasse o fio de sua paixão. Apontava cada detalhe como quem revela segredos a um amigo íntimo.
“A luta de classes também é uma forma de arquitetura”, afirmou. “Veja a mão do homem se estendendo à árvore — um gesto que é político, espiritual e arquitetônico.” Com Gaudí, o pessoal e o profissional se fundiam. Cada detalhe, cada curva, cada pedra moldada era um manifesto.
Contou o final: atropelado por um bonde, Gaudí foi levado ao hospital dos indigentes. Por sua aparência desleixada, ninguém o reconheceu. Quando descobriram quem era, recusou-se a mudar-se. Morreu ali mesmo, entre os pobres. Como queria. A Sagrada Família segue inacabada, como uma oração interrompida.
Ao fim do passeio, acertamos a corrida. “Moltes gràcies”, dissemos. Ele partiu, aumentando o volume do rádio. Ficou no ar o som de uma rumba catalã, e a impressão de que, por algumas horas, tínhamos rodado não só por Barcelona — mas também pelos labirintos de um espírito em pedra.
Versão original publicada no meu livro “Nem Aqui, Nem Ali, Nem Acolá”, Editora Bargaço