Em muitas cidades ao redor do mundo, os flanelinhas – guardadores e lavadores informais de carros – são uma presença constante, integrada à complexa engrenagem da dinâmica urbana. À margem do mercado de trabalho formal, esses trabalhadores encontram nessa atividade uma forma de sobrevivência. No entanto, a relação que estabelecem com os motoristas é permeada por contradições e ambiguidade: por um lado, há o medo de possíveis danos aos veículos ou até de uma ameaça velada; por outro, a gorjeta é oferecida, não raro, acompanhada de um misto de aversão e preconceito.
O que define essa transação? Seria uma forma de mendicância com nuances de agressividade? Um serviço público? Ou seria uma chantagem social disfarçada? A resposta a essas perguntas permanece nebulosa, como se a própria natureza dessa interação escapasse de uma definição precisa. Para muitos, os flanelinhas são vistos como uma praga urbana; para outros, representam uma parcela da população que tenta subsistir em um sistema que os ignora.
A profissão de guardador de veículos foi regulamentada há décadas no Brasil. A Lei nº 6.242 de 1975, seguida pelo Decreto nº 79.797 de 1977, tentou legitimar a atividade, criando um processo de registro junto às Delegacias Regionais do Trabalho. Todavia, a realidade do dia a dia nas ruas mostra que essa regularização nunca se consolidou. A burocracia excessiva, com exigências de antecedentes criminais e certidões negativas, faz com que poucos trabalhadores consigam se registrar formalmente, perpetuando um ciclo de informalidade que parece impossível de romper.
Além disso, há uma lacuna gritante entre o que a lei prevê e o que se observa na prática. Diversas cidades brasileiras, como São Paulo, Fortaleza e Belo Horizonte, tentaram implementar programas de cadastramento informal e distribuição de crachás e uniformes, mas tais iniciativas, apesar de bem-intencionadas, falharam em trazer uma solução definitiva. A capacitação para outros ofícios também não obteve êxito: a renda instável, mas muitas vezes superior, obtida na informalidade é um fator que afasta os flanelinhas de empregos formais com salários mais baixos.
Para resolver essa questão, é preciso abandonar soluções temporárias e paliativas. O caminho para uma solução sustentável passa por um esforço colaborativo, que envolva os flanelinhas, as prefeituras e a sociedade civil. Mais do que simplesmente cadastrá-los, é necessário criar um sistema que delimite áreas de atuação, estabeleça códigos de conduta e, acima de tudo, ofereça contrapartidas sociais, como a formação de cooperativas ou sindicatos. Somente assim será possível tratar esse problema de forma justa e respeitosa.
No entanto, o discurso de muitos candidatos a cargos públicos insiste em promessas superficiais. É essencial que se compreenda que a questão dos flanelinhas não pode ser resolvida com gestos simbólicos. Um verdadeiro compromisso é necessário, um compromisso que enxergue a dignidade dos trabalhadores informais e proponha soluções que não sejam apenas cosméticas.
Em uma recente visita ao Uruguai, observou-se uma prática interessante que poderia inspirar mudanças no Brasil. No país vizinho, os guardadores de carros fazem parte do sistema urbano de maneira organizada. Uniformizados e identificados, atuam em áreas delimitadas, com reconhecimento formal de suas funções, contribuindo para a organização do trânsito e do espaço urbano, quase como uma extensão do trabalho dos guardas municipais. Adaptações dessa experiência poderiam trazer benefícios ao contexto brasileiro, promovendo um sistema que não apenas dignifique os trabalhadores, mas também torne a relação com os motoristas mais transparente e segura.
Palmarí H. de Lucena