Silêncio pairou sobre as arquibancadas e a pista de corrida. Estávamos próximo ao inicio da Indy 500, realizada tradicionalmente no fim de semana do Memorial Day, na cidade de Indianápolis. Homens e mulheres que perderam a vida a serviço da pátria, homenageados por quase meio milhão de pessoas. Contrastava a atmosfera de reverência e tristeza com as cores alegres dos trinta e três carros na pista. Muitas guerras, muitos heróis.
Momento da benção. Distorcida pelo sistema de som, as palavras do arcebispo de Indianapolis ressoavam incompreensivelmente pela vastidão da pista oval. Pilotos e mecânicos prontos para competir. Patriotismo e religiosidade americana vestindo um evento esportivo. Salva de palmas para os heróis no céu, heróis na pista. Gentlemen, start your engines, liguem seus motores. Finalmente o anúncio que esperávamos. Barulho infernal, a corrida começou…
As labaredas na lareira morriam rapidamente, já não aqueciam a sala. Em Harare, capital do Zimbabué, a temperatura havia alcançado níveis próximos a 0ºC. Desligamos a televisão e retiramo-nos para a área da casa com calefação a gás. Dormimos sem esperar o final da prova. Noticiário matinal: Emerson Fitipaldi vencedor da Indy 500 de 1989. Pela primeira vez, um brasileiro.
Aeroporto de Luanda, Angola, dois anos depois. Aguardávamos uma delegação de cinco bispos norte americanos, representantes do programa de ajuda humanitária da conferência episcopal liderado pelo Reverendo Edward O‘Meara, Arcebispo de Indianápolis. A visita coincidia com a assinatura dos chamados Acordos de Bicesse. Paz duradoura parecia iminente; as calamidades trazidas pela guerra apresentavam um contraponto real e assustador. Seguiriam depois para a África do Sul.
Alto, obeso e ofegante, o arcebispo desembarcou primeiro. Tínhamos um programa extenso: três dias visitando enfermarias de pacientes aidéticos, acampamentos de famílias desabrigadas pela guerra e projetos de ajuda humanitária, na província de Benguela.
Você conhece Emerson Fitipaldi? Perguntou o arcebispo enquanto visitávamos um grupo de aidéticos. Não esperou a resposta. Continuou sua narrativa entusiasticamente. Conhecia todos os pilotos da Indy 500, muitos haviam recebido sua benção. Olhos tristes e suplicantes, de pessoas esperando morte lenta e gradativa, observavam-nos.
Partimos para a África do Sul. Nelson Mandela havia sido libertado da prisão de Robben Island, depois de vinte e sete anos de encarceramento. O sistema de supremacia racial e racismo institucionalizado estavam vivendo por pura inércia.
Deparamo-nos, na nossa primeira visita, com um enfrentamento entre as forças de segurança e um grupo de jovens. Pedras e coquetéis Molotov contra soldados protegidos pela armadura de transportes blindados, conhecidos no Brasil como caveirões. Invenção sul-africana usada na repressão da população negra desde 1948. Protagonista em batalhas assimétricas. Feridos e mortos misturados com a poeira e águas negras dos esgotos abertos.
O arcebispo foi convidado para celebrar a missa dominical na igreja da comunidade. Mulher jovem ofereceu-se como intérprete. O tema escolhido: Direitos Humanos. Gradualmente, a congregação parecia agitada com as palavras do clérigo. Agrupados no centro da igreja, começaram o toi-toi, a dança de protesto da população negra. Slogans revolucionários, punhos fechados no ar. Gritavam: Amandla! Amandla! Poder […] para o povo.
Braços cruzados, olhando incompreensivelmente para a cena, o arcebispo parecia perdido no altar. Amandla! Repetiu a palavra várias vezes, sem saber exatamente o significado. Os fieis respondiam entusiasticamente.
Soubemos depois o que havia acontecido. A intérprete era uma militante da luta contra o apartheid. Havia apimentado a tradução da homilia com slogans revolucionários. Nunca pensei em ser um revolucionário, mas sempre existe uma primeira vez, comentou o arcebispo. Um ardente defensor do humanitarismo morreu em 1992, na pole position da corrida contra a miséria e a opressão dos povos da África…