Aroma almiscarado de pétalas de rosas misturadas com incenso. Indígenas, cabeças cobertas com capuz de cor púrpura, carregando um andor pesado com uma grande imagem do Nosso Senhor. Caminhavam ritmicamente. Cadenciados por batidas monótonas de tambores. Observávamos a procissão. Cinco séculos de história em câmera lenta. Povo oprimido, povo de fé. Páscoa em Antigua, Guatemala.
Acordo de Paz entre o Governo e rebeldes encerra um conflito armado que durou mais de 36 anos. Povo Maia, terceiro aniversário. Quantos pagaram o preço mais alto pela liberdade? Quantas vidas? Buscávamos as respostas, rostos suados, olhos tristes. Pareciam em transe, a procissão movia…
Domingo de Ramos, as primeiras procissões da Semana Santa. Imagens de Jesus de Nazaré e Nossa Senhora das Dores carregadas em andores originários de várias igrejas, convergiam para a procissão principal. Pesavam toneladas e requeriam de 50 a 100 pessoas para carregá-los. Vestidos em trajes típicos Maia, chamados de “cucuruchas”, reencenavam a entrada de Jesus em Jerusalém. Motivados pela penitência; o status não era de grande importância. Continuariam até a quinta-feira celebrando eventos similares, em memória dos últimos dias de Cristo na terra. Entardeceu. Bandas funerárias tocam em frente das igrejas. O povo congregado come, bebe e joga em bazares de festas.
Dois anos depois, a apresentação ao público do relatório “Guatemala: nunca mais”, resulta no assassinato do seu autor Bispo Juan Gerardi.
“Se não tivesse sido pela resistência dos nossos povos, os militares teriam exterminado a todos. Nós, viúvas, somos a cicatriz, o sinal mais claro da violência que sofremos. Agora nos organizamos não somente para sobreviver, mas também para buscar justiça.” Tribunal Permanente dos Povos, Madri, Espanha.
Anoitecer da Sexta-feira Santa. Cidade e devotos enlutados. Ruas e casas decoradas com faixas de crepe negro. Fieis queimam incenso e acendem velas. Homem carregando um crucifixo lidera a procissão, seus seguidores com estandartes inscritos com as últimas palavras de Jesus. Multidão reza silenciosamente. Devotos choram e fazem penitência. A imagem de Cristo crucificado, permeada pelo incenso no ar, cria uma atmosfera obsedante. Às 23 horas pousam a imagem dentro da igreja.
A procissão do Sábado de Aleluia é dedicada à Virgem Maria. Andores menores e carregados por mulheres vestidas nos seus melhores trajes, algumas usando sapato alto. Domingo de Páscoa, dia festivo com celebrações e fogos de artifício. O céu brilha…
“Os massacres indiscriminados dos indígenas, inclusive mulheres, anciãos e crianças, e a forma com a qual foram realizados, evidenciam a intencionalidade de destruir, total ou parcialmente, a população indígena da Guatemala. Essas ações se caracterizam como crime de genocídio”. Tribunal Permanente dos Povos, Madri, Espanha.
· 150 mil assassinatos
· 50 mil desaparecidos
· 1 milhão de refugiados
· 200 mil órfãos
Alfombras adornam as rotas das procissões. A palavra significa tapete em árabe, costume trazido da Andaluzia Mourisca pelos colonizadores do povo Maia. Residentes começam preparativos para sua criação, semanas, às vezes meses antes da Semana Santa. Nivelam com areia as ruas calçadas, desenham moldes com cavaco de madeira pintando em cores brilhantes. Decoram com agulhas de pinho e plantas nativas, que exalam fragrâncias.
Tradição Maia, simbolismo bíblico e cenas da natureza são refletidos nas alfombras. Sua construção: um sacrifício, uma penitencia. Destruídas pelas procissões que passam. Sacrifícios em memória à morte de Cristo…
Nossa última visita. A procissão passou enquanto viajávamos pela minúscula cápsula do tempo. Dez anos de memória dos quinhentos anos de opressão da Guatemala, o povo Maia sempre reconstruindo suas alfombras…
Guatemala 1987