Avenida Corrientes, Buenos Aires. Vultos genéricos movendo-se furtivamente na luz baixa do anoitecer. Decadência e pobreza empilhadas nas esquinas da vida. Homens e mulheres bailando o tango da sobrevivência em frente de bares, restaurantes e teatros. Ninguém sabe de onde vêm ou aonde vão. Casa número 000 de uma calle sem nome. “Descamisados” de alhures, “cartoneros” de hoje. Sobrevivendo à perversidade da globalização, criando uma economia paralela sustentável, com lixo reciclável.
Homem magro, vestido modestamente. Acordeão em péssima condição, tocado sem grande interesse. Doações na caixa preta na calçada. Pessoas passam sem prestar atenção ou colocar moedas. Acordes de “Mi Buenos Aires Querido”, versos cantados pausadamente. Sabor de idos dias felizes misturado com nicotina e vinho barato. Paixão portenha abrigando a depressão urbana, sob o manto dourado de Carlos Gardel.
“Bajo tu amparo no hay desengaño
vuelan los años, se olvida el dolor…”
Som de moedas caindo na caixa. O músico anima-se, ensaia pequenos passos de tango enquanto toca. Turistas brasileiros, armados de sacolas cheias de compras, caminham apressadamente. Barulho das rodas das maletas recém adquiridas. Litania de vendedores e cambistas tentando interagir com clientes. Ofertas na língua franca das ruas – todas as variedades e sotaques. Encolhendo os ombros, o homem suspirou como se dizendo: só tenho tango para vender. Continuou…
“En caravana los recuerdos pasan
como una estela dulce de emoción,
quiero que sepas que al evocarte
se van las penas del corazón…”
Jantar no Hotel Panamericano, em frente do Obelisco. Meia noite. Trânsito movimentado ao redor do monumento. Decidimos caminhar por La Florída, rua de pedestres, até as Galerias Pacifico. Uma cidade sempre acordada na penumbra da noite. Corpos grudados contra o rodapé dos edifícios. Crianças brincando. Famílias empilhando material reciclável em cada esquina. Esperando por compradores, como se esperassem a Godot…
Legião de quase 100.000 catadores de lixo, sem benefícios sociais, seguro ou equipamento de proteção industrial. Transformaram o país em exportador de cartão reciclado.
Lembramos dos cristãos “Zabbaleen” do Cairo e dos Romani, os chamados Ciganos, do Leste Europeu, enquanto caminhávamos. Pessoas vivendo e trabalhando em verdadeiras “lixões”, no perímetro urbano. Negócio de comunidades marginalizadas. Olfatos anestesiados pela miséria e matéria orgânica em decomposição. Vulneráveis à hepatite e expostas ao tétano. Reciclando latas e cartões, gerando renda e empregos para milhares de excluídos. Aqueles que deveriam ser beneficiários de programas de alivio da pobreza, das Metas do Milênio, aliviando, sozinhos, sua própria miséria. Inadvertido paradigma do desenvolvimento sustentável.
Regressamos ao Brasil no dia seguinte. Poucos carros ou pessoas nas ruas. Cheiro de maresia na solidão da madrugada.
Vultos caminhando na calçada da orla. Carrocinhas precárias movidas por animais em condições similares. Pequenos grupos de pessoas, adolescentes e mulheres, catando e empilhando materiais. Fim de uma jornada que começou no fim da tarde, nas ruas movimentadas da capital. Tratamento desumano de animais, crianças desprotegidas reciclando o lixo dos que têm, fortalecendo a economia. Brasil, campeão mundial de reciclagem de latas.
Pessoas humildes são verdadeiros outdoors daquela pobreza que gostaríamos que fosse invisível, catando lixo a céu aberto. Visões diárias que nos envergonham. Dão-nos pena, nada mais. Poucos os consideram ou os aceitam como protagonistas na luta pela sobrevivência do planeta.
Lixo reciclável gera renda e emprego para mais de 700 mil pessoas. Cada brasileiro produz em média 920 gramas de lixo sólido por dia. A quantidade reciclada, na coleta seletiva ou por catadores, chega apenas a 2,8 kg por ano, por habitante. Centenas de milhões de reais jogados no lixo, literalmente. Hora de mudar.
Crianças examinando latas de lixo de um restaurante e de um hotel próximo a nossa casa. Chegamos…
Palmari H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores