Encontro na sombra do baobá

O ritual do “kaffa” havia começado mais cedo. Chuvas torrenciais e enchentes. Inverno na Etiópia. Fogareiro de carvão no centro da sala, Rahel, a dona do quiosque, torrava café verde misturado com cardamomo, cravo e canela. Triturava os grãos num pilão rudimentar. Preparava o café em uma cafeteira cônica de flandre. Servia a bebida em taças minúsculas com um bule de barro. O café mais forte, sempre para os mais idosos ou os mais importantes.

Hoje seria a nossa última visita ao quiosque. Rahel nos presenteou um pacote de grãos de café, que ela havia torrado e uma lata de mirra. Observou-nos silenciosamente enquanto degustávamos a primeira taça. Pôs uma cruz Amhara na minha mão direita, pedindo nosso silêncio com o dedo indicador tocando nos lábios. “Ata, tenho um mau pressentimento, muitas nuvens negras no horizonte. Se cuide!” Despedimo-nos de uma vez. “Dehna hunu!”Partimos para o aeroporto. Embarque imediato para Lusaka, no outro lado da África…

As nuvens negras nos seguiram. Pouso horroroso no meio de uma tempestade. Havíamos passado um mês em Lusaka, antes da missão em Adis Ababa. Regressávamos agora para fazer uma conferência para o empresariado nacional e consultas com a Missão da ONU. Terminamos tudo em quatro dias. Sobraram três dias para umas pequenas férias e a tradicional festa de despedida.

“The Brown Frog”, o bar mais popular de Lusaka. Dançamos e bebemos até quase o dia amanhecer. Os homens em grupo, sempre com um copo de cerveja na mão; as mulheres organizadas em pelotões, dançando em movimentos simétricos e de crescente complexidade coreográfica. Saiam da fila para dançar um solo, um pouco de marketing pessoal. “Gostou da festa?” Perguntou o colega ao deixar-nos no hotel. Continuou, sem esperar a resposta. “O senhor não parece estar muito feliz, talvez um pouco perdido”. Declarou em seguida: “… quando nos sentimos perdidos na África, caminhamos em direção ao horizonte até nos encontramos. Por que não faz um safári antes de partir?” Uma pergunta e uma sugestão. “Soubemos que seu aniversário é amanhã, seu safári a pé já está reservado. É só dizer sim”. Confessou com um sorriso matreiro e um piscar de olho.

Começamos o safári com os primeiros raios de sol. Guia e dois guardas armados; provisões para dois dias. O solo estava encharcado pelas chuvas, o rio Zambezi transbordando. Poucos animais apareceram.

Encontramos uma família americana, perdida, descansando na sombra de um baobá. Enquanto o guia explicava o caminho de volta, entretemos a filha do casal. Chamava-se Annie, tinha três anos, olhos azuis e uma risada contagiante. Fizemos caretas horríveis, imitamos todos os animais conhecidos e desconhecidos. Cansou de brincar subitamente. Deitou-se no banco traseiro do jipe. Saímos para observar uma prole de leoas. Voltamos. Partiram sem dizer adeus.

Regressamos ao acampamento. A família americana tomava chá. Annie aproximou-se da nossa mesa, tocou no meu braço e gritou em direção aos seus pais: “This is the man!”. Responderam com uma gargalhada coletiva. Vieram em seguida à nossa mesa pra explicar o que acabara de acontecer, a razão do barulho. Havíamos sido escolhidos por Annie como o seu animal favorito da savana africana. O mais engraçado também. Vencemos contra todos. Concorrentes sérios como o gnu, o crocodilo, a girafa, o rinoceronte, o hipopótamo, até o Rei Leão.

O céu estava limpo naquele dia, o horizonte visível. As nuvens negras haviam desaparecido. Primeiro dia feliz em semanas. Tocamos na cruz de Rahel. Descobrimos que não estávamos sós na sombra de baobá…

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores