Encontro na sombra do baobá

Encontro na sombra do baobá

O ritual do “kaffa” naquela manhã tinha começado mais cedo. Chuvas torrenciais banhavam o inverno na Etiópia, transformando o ar em uma névoa úmida. Rahel, a dona do quiosque, já estava no centro da pequena sala, rodeada pelo calor do fogareiro de carvão. No pilão rudimentar, ela triturava os grãos de café verde, misturados com cardamomo, cravo e canela, criando um aroma que preenchia o ambiente. Cada movimento parecia parte de uma dança antiga, e a cafeteira cônica de flandre borbulhava lentamente, revelando um café forte, escuro e profundo, reservado para os mais velhos ou os mais importantes.

 Naquele dia, sabíamos que seria nossa última visita ao quiosque. Rahel nos presenteou com um pacote de grãos de café torrado e uma lata de mirra, seu olhar silencioso acompanhando cada gole que dávamos da pequena taça de barro. Sem palavras, colocou uma cruz Amhara em minha mão e, com um gesto delicado, pediu silêncio ao tocar os lábios com o dedo indicador. “Ata, muitas nuvens negras no horizonte… Se cuide.” Com essa despedida carregada de pressentimento, partimos em direção ao aeroporto, o coração pesado com o eco de suas palavras.

As nuvens negras nos seguiram até Lusaka, onde pousamos em meio a uma tempestade feroz. Já tínhamos passado um mês naquela cidade antes de nossa missão em Adis Abeba, e agora retornávamos para encerrar compromissos oficiais. No entanto, sobrou tempo para descansar, e na tradicional festa de despedida, no popular bar “The Brown Frog”, dançamos até o amanhecer, embalados pela energia das mulheres que se moviam em sincronia, e pelos homens, sempre com suas canecas de cerveja.

Na manhã seguinte, fomos surpreendidos com a proposta de um safári a pé. O guia e os guardas armados nos conduziram ao longo do Zambezi, que transbordava com as chuvas recentes. O solo encharcado tornava a caminhada mais lenta, e os animais, tímidos, mantinham-se distantes. Foi então que encontramos uma família americana, descansando sob a sombra de um majestoso baobá. A pequena Annie, de três anos, com seus olhos azuis brilhantes e uma risada irresistível, logo se tornou nossa companhia.

Enquanto o guia conversava com seus pais, nós a entretínhamos com caretas exageradas e imitações de animais selvagens. Ela ria de forma contagiante, até que, repentinamente cansada, se deitou no jipe. Voltamos ao acampamento mais tarde, e lá estavam eles novamente, a família americana tomando chá sob a sombra de outro baobá. Annie, ao nos ver, correu em nossa direção, tocou meu braço com a segurança de quem reconhece algo importante e gritou para os pais: “This is the man!”.

O riso preencheu o ar, e logo os pais vieram até nós para explicar o porquê da empolgação: Annie nos havia escolhido como seu animal favorito da savana, superando o gnu, o crocodilo e até o leão. Era seu modo de nos eternizar em sua pequena aventura africana, uma escolha sincera e repleta de encanto.

Naquele dia, o céu estava limpo, o horizonte se desenhava sem ameaças. As nuvens negras de Rahel haviam desaparecido, e pela primeira vez em semanas, o sentimento de paz retornou. O toque na cruz de Rahel trouxe um consolo inesperado, como se a sombra do baobá fosse mais do que abrigo físico, mas um lembrete de que não estávamos sós. E, em algum lugar entre o riso de Annie e o céu limpo, encontramos aquilo que havíamos perdido no caminho.

Palmarí H de Lucena, Zambia, 25 de julho de 2004