Mudamos para o Hotel Earle na Washington Square, Greenwich Village, logo após a nossa chegada na “Big Apple”, outono de 1970. Hotel de segunda classe, aluguel barato, local pitoresco. Ancoradouro perfeito para pessoas em trânsito. Artistas, emigrantes recém-chegados, pessoas recebendo amparo social, dependentes químicos, veteranos da guerra do Vietnã. Muitas histórias, ninguém queria ser ninguém… Residentes antigos, sempre sentados nos sofás do lobby, observavam os recém-chegados com olhares de soslaio.
“Você sabia que Bob Dylan morou no quarto 302?” Número da nossa chave! Olhamos para o recepcionista, com um sorriso incrédulo. Não desistiu. “Despejamos o outro Dylan, Dylan Thomas, muito barulhento… Michelle e John, dos Mamas & Papas, escreveram a canção “Twelve-thrirty” no 507.” Cantarolou uma estrofe: “Eu vivia na cidade de Nova Iorque. Tudo lá era escuro e sujo. Do lado de fora da janela havia um campanário, com um relógio sempre mostrando 12:30… Ah! Pagamento de um mês adiantado. Não é aconselhável fumar cigarro na cama, qualquer cigarro! No parque é melhor, mais seguro. Concordamos. New York estava em declínio total, os tabloides e políticos Republicanos do Centro Oeste alcunharam a cidade de Sodoma.
Caminhávamos tranquilamente na Bleecker Street, uma das ruas mais populares de Greenwich Village, o bairro boêmio de New York. Atmosfera carregada de temores e protestos sobre a Guerra do Vietnã, estávamos no epicentro do movimento contra a guerra, da Genesis do Movimento Gay contra brutalidade policial. Panela de pressão da contracultura hippie, misturada com canções de protesto, jazz e arte psicodélica. Bob Dylan vivia pertinho na Rua MacDougal, John Lennon passeando de braços dados com Yoko Ono, Marcello Mastroianni comprando bananas na companhia de Faye Danahue na quitanda da esquina das ruas Bleecker com a Perry. Celebridades eram normais, o bairro acolhia todos, não importava rótulos ou receptáculos. Nosso destino era uma mercearia que vendia cafés de “lugares exóticos”, o Brasil entre eles.
Artistas e hippies ocupavam espaços na calçada oferecendo produtos e serviços diversos, entre as ofertas mais procuradas, pinturas de retratos em aquarela e baseados. Pintor com uma boina a lá Francesa, devidamente paramentado como alguém do Velho Continente, uma placa anunciava seu nome “René La Touche”, trabalho de boa qualidade e maneira amigável atraia os transeuntes, com mais frequência do que seus competidores. Nos aproximamos do pequeno ateliê, Monsieur La Touche está ocupado pintando e dialogando com o próximo cliente. Sotaque brasileiro e as limitações linguísticas do artista, nos aproximaram dele. Trocamos olhares mútuos de reconhecimento, o artista era o Paraibano, Ivan Freitas. Após o choque inicial, nos encontramos umas tantas vezes para observar os trabalhos do artista com tintas acrílicas, longe do surrealismo das obras pintadas na casa da Vila dos Motoristas. Quanto a alcunha e disfarce francês, o artista explicou que não queria seu nome nas pinturas da calçada, caso ficasse famoso um dia. Perdemos contato.
Visitamos a Galeria Gamela nos anos de 1980, vários quadros de Freitas/La Touche estavam expostos. O acrílico havia triunfado! Escolhemos uma tela, vetada imediatamente por meu filho mais velho: Pai este quadro tem um código de barras suspenso sobre uma bela praia! Não transmitimos a crítica juvenil ao artista. Compramos um belíssimo exemplar que ilustra esta memória.
Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores