Tensão na sala de conferências da secretaria municipal de serviços para dependentes químicos. Pairando sobre a mesa decorada com restos de fatias de pizza e copos de isopor, uma forte flagrância de tabaco. Cinzeiros transbordando. Grupo diverso de funcionários e experts, membro da força tarefa intergovernamental encarregada de enfrentar o crescente problema de adição à heroína na Cidade de Nova Iorque. Primeira reunião como subsecretário responsável pela dotação de recursos, não prometia um alvissareiro ou tranquilo ano de 1974. Determinar jurisdição e responsabilidade pelos diferentes componentes de tratamento, prevenção e fontes de financiamento. A cidade estava praticamente quebrada, os governos estadual e federal demandavam contrapartida financeira e participação intrusiva em todos os aspectos do programa. Argumentos, posições inflexíveis e hostilidade aberta entre os participantes. Cansados, encurralados em uma viela burocrática, tínhamos que encontrar uma saída. Por que estamos brigando? Ponderou alguém em voz alta, respondendo sua pergunta em seguida: […] quase 250 mil viciados na cidade, é só dividir as fatias do pastelão de acordo com a proximidade politica e as necessidades de cada jurisdição. Temos viciados de sobra, bastante para todos nós. Palavras sábias, cinismo pragmático. Guerra contra as drogas, companheiros de luta na outra guerra americana, bem longe do Sudeste da Ásia. O clima de insegurança e a decadência da cidade conspiravam contra investimentos massivos em programas de prevenção e tratamento. O povo queria resultados: redução em todas as atividades antissociais e criminosas, associadas com a chamada epidemia de heroína. Comunidades terapêuticas e clínicas de metadona competiam, com fervor quase religioso, para demonstrar que sua modalidade de tratamento era uma opção mais eficaz a longo prazo, mais econômica do que internação compulsória para pessoas flagradas com certas porções ou cometendo crimes sob a influência dela. Primeira eleição pós-Watergate se aproximava. Os republicanos ocupavam a Casa Branca e o governo do Estado de Nova Iorque. Pressão popular pelo endurecimento das leis antinarcóticos atendida. Criou-se leis que previam quinze anos de prisão para qualquer pessoa em posse de 115 gramas de narcóticos, a mesma pena aplicada para homicídio em segundo grau, que no Brasil corresponde a crime doloso. Aumento dramático no número de encarcerados, sem reduções significativas na criminalidade ou adição a narcóticos. Modificaram as leis, vinte anos depois, com redução de centenas de milhões de dólares em gastos penitenciários e aumento de investimentos em tratamento e reabilitação. Argumentos similares àqueles propostos por políticos e mídia norte-americana no século passado começam a ressonar na nossa sociedade e legislativo. Pronunciamentos em audiência pública e na imprensa demandam maior rigidez na culminação legal de penas para crimes cometidos sob a influência de drogas, principalmente crack, e tratamento compulsório para a reabilitação do dependente. Crack tornou-se a bucha para o canhão da opinião pública, cansada de insegurança e rebaixamento da qualidade de vida. Veias abertas da miséria humana ofendendo nosso sentimento de progresso e bem estar material. Precisamos nos tornar mais humanos e criativos para enfrentar a expansão e os efeitos de crack na nossa juventude. Podemos até argumentar que se a droga fosse usada pelas classes média ou alta, não estaríamos dizendo que é impossível tratá-la como qualquer doença. As complexidades do tratamento de dependência química ao crack são mais influenciadas pelo contexto e circunstância social do usuário, do que a reação bioquímica. Foi o que aprendemos na experiência de Nova Iorque. Essa descoberta nos deu um raio de esperança para situações de desespero que destruíam famílias e comunidades. Narrativas populistas propondo medidas draconianas sobre o problema aumentaram o capital politico dos proponentes e atraem a atenção da mídia alarmista, sem contribuir positivamente para a sua solução. Confundem os perpetuadores do crime com as suas vítimas… Nossas prisões não precisam de mais residentes nem nossos necrotérios de mais cadáveres. O caminho a seguir é a desintoxicação hospitalar, apoio psicológico combinado com habilitação e capacitação vocacional, reintegração em famílias e comunidades, das pessoas que estão morrendo nas ruas, nas páginas dos tabloides e na indiferença pública. Déjà vu ou realidade, o importante é fazer algo certo…