Dicotomia confortável do bem e do mal

Dicotomia confortável do bem e do mal

Quando as pessoas se sentem ameaçadas, é comum que dividam o mundo em duas categorias opostas: certo e errado, bem e mal, nós e eles. As diferenças entre esses dois lados são retratadas de forma extrema, como se fosse uma batalha entre a escuridão e a luz. Essa divisão é mais evidente em situações de alta ansiedade e pode ser observada especialmente em pessoas com depressão grave ou transtorno de personalidade borderline, conhecido como “clivagem” ou divisão, de acordo com psicólogos.

Essa divisão é reconfortante, pois oferece uma solução para o caos. Acreditamos que, ao seguir certas ideias, como ler determinados livros, escutar certas músicas ou demonstrar patriotismo erguendo a bandeira nacional no jardim, estamos protegidos e do lado do bem, separados dos outros, no entanto, assim como a maioria das distorções cognitivas, essa divisão inicialmente nos faz sentir melhor, mas depois nos deixa piores. As linhas claras que traçamos acabam se tornando grades que nos aprisionam, impedindo-nos de enxergar nossos inimigos e heróis de forma adequada e de integrar informações que não se encaixam nessa narrativa. A cada dia, nossos pontos cegos aumentam.

A retórica do bem contra o mal é frequentemente usada em campanhas presidenciais para criar um contraste claro entre as propostas e valores dos candidatos. Nesse contexto, o “bem” refere-se a ideias consideradas culturalmente corretas, justas, éticas e benéficas para a sociedade, enquanto o “mal” representa ideias negativas, prejudiciais, injustas ou antiéticas, no entanto, é importante destacar que o uso dessa retórica pode levar à polarização, à demonização do oponente e enfraquecer o diálogo construtivo, que é fundamental para o confronto de ideias e discussão de propostas baseadas em fatos e evidências, essenciais para o fortalecimento da democracia.

A maioria de nós se sente insegura e em conflito sobre como resolver problemas complexos, como a desigualdade social, violência urbana, narcotráfico e guerras surgindo em vários pontos do globo. Quando políticos e ativistas nos dividem e só ouvem os extremistas, ficam desconectados da realidade. Durante anos, antes da revogação do aborto legal nos EUA, ficou claro que muitos republicanos não se encaixavam perfeitamente na posição antiaborto. Segundo a Pesquisa Social Geral de 2021, cerca de um terço deles afirmava apoiar o aborto legal, se uma mulher desejasse por qualquer motivo, como aconteceu quando eleitores do Kansas e Ohio votaram a favor dos direitos ao aborto, surpreendendo muitos especialistas políticos.

Da mesma forma, quando se trata das mudanças climáticas, não existem apenas dois grupos, os negadores e os crentes. Isso nunca existiu. Como disse o escritor israelense Edgar Keretele: “Eu acredito que em nossas almas, mentes, ou como quer que você chame, existe algo muito complexo, alguma capacidade de conter ambiguidade, de não ser varrido apenas por uma emoção. Ser capaz de lidar com a complexidade da existência… Portanto, é absurdo rotular as coisas como condenáveis ou não, sem querer condenar nada, apenas pedindo que sejamos humanos e tentemos entender a dor do outro quando a vemos”.

Esse pode ser o melhor conselho para vivermos bem em uma época como a atual: respire a complexidade, encare a dor, tome cuidado com o pensamento em preto e branco e descanse seus olhos cansados na área cinza, o lugar onde toda a ação acontece.

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores

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