Earle Hotel, esquina Sul da Washington Square com a Fourth Street Oeste, cidade de Nova Iorque. Famoso por seus ciclos de pobreza e luxo; artistas e acomodações baratas. Joan Baez escreveu uma canção inspirada em Bob Dylan, seu ex-amante, anos depois de sair do hotel. “Diamonds & Rust… Agora você está sorrindo para o exterior daquele hotel vagabundo. Na Washington Square…”
Mudamos para o hotel, logo após a nossa chegada. Hotel de segunda classe. Aluguel barato. Local pitoresco. Ancoradouro perfeito para pessoas em trânsito. Artistas, emigrantes recém-chegados, pessoas recebendo amparo social, veteranos da guerra do Vietnã. Muitas histórias. Ninguém queria ser ninguém… Residentes antigos, sempre sentados nos sofás do lobby, observavam os recém chegados. Olhares de soslaio. “Você sabia que Bob Dylan morou no quarto 302?” Nossa chave! Olhamos para o recepcionista, com um sorriso incrédulo. Não desistiu. “Despejamos o outro Dylan, Dylan Thomas, muito barulhento… Michelle e John, dos Mamas & Papas, escreveram a canção “Twelve-thrirty” no 5-0-7.” Cantarolou uma estrofe: “Eu vivia na cidade de Nova Iorque. Tudo lá era escuro e sujo. Do lado de fora da janela havia um campanário, com um relógio sempre mostrando 12:30…” Ah! Pagamento de um mês adiantado. Não era aconselhável fumar cigarro na cama. Qualquer cigarro! No parque é melhor, mais seguro. Concordamos. A cidade estava em declínio total…
Grupo de residentes conversando animadamente ao redor de uma mesa na praça. Dois jogavam xadrez intensamente. Todos fumando. Cigarro apagado na boca contemplava a cena. Alguém ofereceu um fósforo acenando com a mão. Um convite. Apresentações rápidas: Mieczyslaw. Cineasta polonês. Lançando um filme de longa metragem (cinco horas!), no mercado americano. Sua esposa, Elektra. “Sou uma lésbica.” Pausa. “Nasci na ilha de Lesbos, Grécia.” Profissão, atriz. Roy, texano, obeso. Comediante stand-up. Imitava objetos inanimados. Maiores sucessos: carburador, liquidificador e cortador de grama. Fritzie, esposa de Roy. Alemã Oriental. Técnica de enfermagem em clinica de metadona. A única pessoa do grupo com meios visíveis de renda. Apresentamos-nos. Silencio geral… Fomos aceitos no grupo. Não sabíamos por que…
Informamos ao grupo que a prefeitura municipal havia disponibilizado apartamentos, com aluguel controlado, para artistas. Todos olharam ansiosamente na nossa direção. Artista? Falaríamos sobre o tema depois. Aquele dia, Mieczyslaw havia nos convidado para uma exibição privé da sua obra prima, “Elektra em Lesbos”. Cinco horas de poemas declamados em grego arcaico. Um coro trágico, acompanhado de lira e timbales. Elektra correndo aleatoriamente por lugares da ilha. Lésbica em Lesbos. Pálida. Nua. Mostrando uma generosa cobertura de pelos pubianos. Talvez, uma concessão à modéstia. Dez garrafas de vinho Mateus depois… Aplausos. A avant-première, um grande sucesso. Emocionado, Mieczyslaw pediu a palavra. Propôs que fossemos o líder e o redator dos dossiês para o projeto de aluguel controlado…
` Enquanto trabalhávamos inventando um perfil de artista, Poeta, algo inusitado aconteceu. Fritzie engravidou, sem seguro de saúde. Voltaram para Dallas. Elektra fugiu com um ex-adicto haitiano. Babalaô e tocador de maracás. Mieczyslaw após ingerir várias garrafas de Mateus, decidiu ser carpinteiro, sua verdadeira vocação. Partiu em direção à Califórnia. Continuamos o projeto. Um livro de poesias, Trilogia do Earle Hotel: “A vista de uma janela grávida com um ar-condicionado, Ventos poeirentos da minha tristeza e Ferrovia com dormentes indígenas”. Colecionamos mais de 120 cartas de rejeição, em dois meses. Um dia, recebemos 50 dólares de uma revista literária de Nova Orleans. Haviam aceitado uma poesia…
Manuscrito, cartas de rejeição, fotocopia do cheque da revista. Nosso dossiê. Declamamos vários poemas da Trilogia. A examinadora perguntou, com ar de preocupação: “… estava deprimido quando escreveu a trilogia?” Respondemos, “não, foi pura inspiração”. Outra pergunta: “tem alguma profissão não poética?” Afirmamos com um gesto cheguevariano, “não, venceremos! Primeiro a Nova Orleans, depois o Premio Pulitzer”. O comitê debateu nossa petição por meia hora. Chamaram-nos de volta a sala. Entregaram um contrato de aluguel controlado. Aprovado. Mudamos no dia seguinte. Apartamento de dois quartos, Perry Street, 114, 54 dólares por mês. Ocupante: poeta desempregado…
Palmari H de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores
Nova Iorque 1969