Cigarros e carabinas Kalashnikov

Noite de verão no Cabo Branco. Céu limpo, lua cheia, plantas aguadas. Brisa do oceano tocando acordes de ¨Amazing Grace¨ nos sininhos da cobertura. Tigela cheia d´agua com pedrinhas de gelo refrescavam frutas diversas. Boa garrafa de Sancerre, temperatura perfeita. Django, Grapelli, MJQ, Miles: presentes! Conversa ab libitum, sem nenhuma pressa ou seriedade. Manuseávamos nervosamente um cigarro, o último da carteira. ¨[…] nicotina faz mal à saúde, por que você ainda fuma?[…] falta de compromisso com você mesmo.¨ Silenciamos. Cigarros nos salvaram a vida várias vezes, comentamos distraidamente.

Tensão na pequena sala de conferências, nuvem de fumo acinzentava ainda mais o ambiente. Responsáveis pela ajuda humanitária tinham dois problemas: a fome que se alastrava pelo país e a apreensão arbitrária por soldados e paramilitares de alimentos e medicamentos doados. Os últimos a chegar, um sargento revolucionário comandando quatro oficiais e um soldado. Depositaram suas carabinas de assalto AK-47 sobre a mesa. Tinham pressa. Ouviram-nos impacientemente. ¨[…] a justiça revolucionária punirá energicamente saqueadores de carga humanitária.¨ Levantaram-se, reunião concluída. Partiram em fila indiana, armas nas mãos. Decidimos não mencionar um incidente com outros soldados que confiscaram nossos pertences na estrada entre Gana e Togo. Terminou sem violência, apesar de ameaças com armas de fogo. Nossos cigarros Marlboro se converteram em cachimbo da paz.

Viajávamos pelas estradas precárias do Distrito de Chokwe, Moçambique. Rebeldes haviam saqueado um leprosário católico, estuprado pacientes e ameaçado as religiosas. Anoitecia. As péssimas condições e os perigos da estrada aumentavam. Chegamos a um pontilhão improvisado, paramos para fazer um reconhecimento antes de atravessar. Ouvimos uma voz na escuridão. A única palavra que entendemos foi “muzungo”: homem branco. Apareceu a figura de um adolescente empunhando uma carabina AK-47 apontada acintosamente na nossa direção. Demandou que virássemos de costas, com as palmas das mãos voltadas para o ar. Aproximou-se. Sentimos o cano da arma na nuca. Perguntou se fumávamos, respondemos que sim. Percebemos sua satisfação quando apressadamente, confiscou nossos cigarros. “Kanimambo!”: obrigado. Pareceu-nos que ia partir. Esperamos em inconfortável silêncio. Aventuramos um olhar de soslaio. Confirmamos que estávamos sós. Prosseguimos nossa viagem, sofrendo uma semana de abstinência de nicotina. Sobrevivemos.

Relembramos outros momentos de perigo. Mundo povoados por clones de crianças- soldados. Armados com uma AK-47, cigarro entre os lábios e inocência perdida nos olhos. Passaportes para uma morte instantânea ou dolorosamente longa. Sobreviventes de conflitos armados vivendo em pobreza abjeta. Pensamentos distantes.

Retornamos à nossa adolescência. O dia em que fumamos nosso primeiro cigarro, marca Astoria. Fazendo pose de adulto, cigarro entre os dedos indicador e médio da mão direita. Gesto elegante. Soltando a fumaça e gingando rua afora. Quatorze anos de idade, costas franzinas carregando o peso insolente da adolescência. Propulsionando nossa marcha, vapores nocivos e aroma agradável. Desatentos aos perigos da jornada.

Voltamos ao presente. Odor desagradável de tabaco e filtros queimados invadia a sensibilidade dos nossos olhos e narinas. Repugnados pela transformação; ofendidos por nossa própria estupidez. Tentaríamos deixar de fumar, pela enésima vez. ¨É preciso demonstrar compromisso com você mesmo cuidando da sua saúde […] antes de demandar o compromisso de outras pessoas com você […]¨. A frase nos perseguia acintosamente… Deixamos de fumar naquela noite. Cigarros nos salvaram a vida muitas vezes, havia chegado a hora de preservá-la.

Sobrevivemos. E as crianças-soldados? Desapareceram como fumaça?

Palmarí H. de Lucenaé membro da União Brasileira de Escritores