O filme “The Matrix” foi lançado no Brasil em 1999, tornando-se um grande sucesso de bilheteria, um clássico da ficção científica famoso por popularizar a metáfora da “pílula vermelha”. No imaginário do filme, as pessoas vivem em grande parte em um estado de ilusão, experimentando uma simulação completamente controlada da vida real que as mantém passivas. Nele, o protagonista é oferecido a escolha do líder rebelde Morpheus de permanecer na simulação, tomando uma pílula azul ou romper com a realidade tomando uma pílula vermelha. Essa não é uma decisão fácil: escolher a realidade, com suas verdades difíceis, ou viver no completo esquecimento da Matrix?
A expressão “pílula vermelha” entrou no léxico como uma escolha que podemos fazer na vida. Ultimamente, isso às vezes se refere à radicalização política, mas desde antes disso e de forma mais benigna, significa a decisão que fazemos na vida de nos entorpecer ou encarar a realidade. Por um lado, propõe-se que podemos aceitar as distrações narcóticas da vida moderna, sejam elas drogas, mídias sociais ou smartphones, por outro lado, podemos enfrentar a realidade às vezes cruel: relacionamentos, trabalho, perspectivas, incluindo a verdade sobre nós mesmos que preferimos não enfrentar.
Com a pílula azul, somos perfeitos como somos: somos amáveis, nossas opiniões estão certas, nunca cometemos erros. A pílula vermelha nos mostra nossos seres imperfeitos: somos falhos, talvez difíceis de amar, culpados, ignorantes e arrogantes. A humildade, a modéstia em relação à própria importância ou expertise, pode se manifestar em um simples ato, como ceder um bom lugar para outra pessoa, ou em uma condição, como viver de forma discreta, ou ainda em uma característica, como evitar a suposição de que estamos sempre certos. Pode ser praticada tanto intelectualmente – um conceito chamado “humildade epistêmica”, presente em discussões sobre religião ou política, por exemplo – quanto socialmente, em nossos relacionamentos com os outros, o que pode envolver a abstinência de comportamentos como o orgulho.
Em muitas tradições, porém, a humildade é considerada uma virtude positiva, como no ensinamento de Jesus de que os mansos herdarão a terra e que o reino dos céus aguarda os pobres de espírito. Friedrich Nietzsche viu a humildade como uma barreira ao progresso humano, uma forma de autoproteção para os fracos e medíocres. Em sua visão, a humildade é distorcida em virtude como um mecanismo de defesa contra pessoas fortes e trabalhadoras.
A razão pela qual não aceitamos prontamente essa pílula vermelha é que, bem, é difícil de engolir. Psicólogos descobriram, por exemplo, que pessoas que têm visões intelectuais e religiosas com maior humildade existencial – simplesmente reconhecendo, na prática, que “é possível estar errado” – sofrem mais de certos tipos de ansiedade do que aquelas que têm pontuações mais baixas em humildade. Humildade, não como auto-ódio, mas como autoconhecimento e aceitação, permite que você tire sua máscara. A pretensão e a manutenção da imagem exigem um trabalho extremamente estressante e demandam muita energia.
Dizer a verdade “Eu não sei”, não competir pelo primeiro lugar em todas as arenas sociais e simplesmente ser você mesmo, imperfeito, pode ser um grande fardo tirado de seus ombros. Muitas pessoas tomam pílulas para relaxar. A pílula vermelha da humildade pode ser, na verdade, o remédio mais eficaz. Nenhuma prescrição necessária. A humildade é a aceitação plena da verdade sobre nós mesmos
Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores