No Brasil, a esperteza parece ter sempre uma porta lateral — e, muitas vezes, ela é assinada por um médico. O atestado médico, criado para proteger quem realmente precisa, virou, em muitos casos, uma ferramenta para escapar da prisão.
Políticos como o deputado Chiquinho Brazão, acusado de ser mandante da morte de Marielle Franco, e o ex-presidente Fernando Collor, condenado por corrupção, mostram como o atestado médico é usado como escudo. Alegam problemas de saúde para adiar ou evitar o cumprimento da pena. Enquanto isso, milhões de brasileiros que realmente precisam de atendimento lutam para conseguir uma simples consulta.
O que deveria ser um documento sério virou, para alguns, um salvo-conduto. A responsabilidade do médico é clara: só pode atestar o que de fato constatar. A lei e o Código de Ética Médica dizem isso sem margem para dúvidas. Mesmo assim, atestados falsos ou duvidosos aparecem, desmoralizando o sistema de justiça e expondo uma ferida profunda: o privilégio.
Enquanto isso, nossos presídios viraram depósitos de gente doente. Estima-se que cerca de 30% dos presos brasileiros sofram de transtornos mentais como esquizofrenia, transtorno bipolar ou depressão. Sem atendimento adequado, eles são jogados em celas superlotadas, sem remédios, sem esperança e sem qualquer plano real de recuperação.
Nos Estados Unidos, que há décadas fecharam hospitais psiquiátricos esperando criar uma rede de atendimento comunitário — que nunca veio —, o que se vê é parecido: prisões lotadas de doentes mentais abandonados à própria sorte. E no Brasil, seguimos pelo mesmo caminho, sem aprender com os erros alheios.
Aqui, os pobres e anônimos padecem atrás das grades sem chance de tratamento. Já os poderosos, com bons advogados e médicos complacentes, transformam hospitais em refúgios de luxo para adiar ou evitar a prisão. A saúde mental é tratada como desculpa por uns, enquanto é ignorada para os que mais precisam.
Resolver o problema exige mais que discursos. É preciso reforçar o atendimento médico nos presídios, treinar agentes para lidar com crises, abrir espaços adequados para tratamento e parar de usar atestados médicos como muleta para a impunidade.
O abuso de atestados médicos por parte dos poderosos, aliados a médicos coniventes e advogados especializados em manobras protelatórias, escancara uma desigualdade obscena: enquanto pobres são encarcerados sem voz nem vez, figuras públicas transformam a medicina em instrumento de fuga. A ética, a justiça e o respeito pela dignidade humana não podem continuar a ser dobrados ao capricho de quem tem influência e dinheiro. Chegou a hora de romper esse ciclo de privilégios.
Por Palmarí H. de Lucena