As pirâmides nos caminhos das Marias

O momento de contemplação e reverencia provocado pela visão das pirâmides, durante o pouso, desaparece rapidamente. Caos é o que impera no trajeto do aeroporto ao hotel. Motoristas agressivos, rudes; de questionável destreza. Dirigem sem demonstrar qualquer interesse. Nosso carro foi avariado em três lugares. Ninguém havia parado ou perguntado… Nosso motorista inspecionou o carro, um gesto de descrença bem ensaiado. “Maálesh!”, sem problema… Levantou as mãos para o céu em suplica. “Inshallah!”. Resolvido. Assim aprendemos o vocabulário necessário para sobreviver às situações que nos esperavam.

O Egito do novelista Naguib Mahfouz é uma mistura de convulsões sociais e políticas; mudança e continuidade. Dicotomia que nos acompanharia por quatro semanas. Visitávamos projetos de melhoria das condições socioeconômicas das comunidades de cristãos cópticos. A Igreja Copta é a maior comunidade cristã no Egito, data do ano 61 D.C., quando São Marcos introduziu o Cristianismo.

Carrocinhas precárias, puxadas por burros, coletam quase um terço do lixo do Cairo. Mais de 2.500 toneladas diariamente. Os catadores de lixo, de trinta a quarenta mil pessoas “vivendo do lixo”, chamados de “zabbaleen”, na maioria cristãos cópticos, vivem ou trabalham em verdadeiras pirâmides, lixões de quase três pisos de altura. Os homens coletam, as mulheres e crianças separam. Uma população marginalizada por seu status de minoria, pela inobservância de costumes islâmicos, como a criação e consumo de carne suína e contato direto com matéria orgânica. Prestando um serviço importante a uma sociedade que os marginaliza. Vivendo a paradoxal situação da pobreza universal, sem fronteiras.

Financiaríamos projetos de saúde materno-infantil, controle de hepatite e melhoria da situação da mulher. Quase todos em parceria com a fundação da Irmã Emmanuelle. Religiosa belga, cujas ações eram comparáveis como às de madre Teresa de Calcutá. Os zabbaleen estavam preocupados em perder o “negocio do lixo”, para firmas multinacionais. Asseguramos apoio financeiro para a formação de pequenos negócios, cooperativas e profissionalização.

Partimos do Cairo em direção de Assyut, no sul do vale do Rio Nilo. Levamos conosco o odor do lixo, até o fim da viagem. Visitaríamos comunidades cópticas, localizadas ao longo da rota usada pela Sagrada Família, quando fugiram da persecução do Rei Herodes… em um burrinho. Assyut é a cidade de maior concentração de cristãos cópticos no país. Venerada por cristãos e mulçumanos, por ter abrigado a Sagrada Família, por mais de três anos em uma gruta, num lugar chamado Dronka.

Iríamos visitar um projeto para verdureiras, nas proximidades de Dronka. Uma delas chamava-se Mariam. Maria em Árabe. Já havia recebido e pago três empréstimos. Era a historia de sucesso que procurávamos…

Uma casa simples, construída em adobe. O teto liso, sem telhas, servia para secar grãos, frutas e matéria orgânica usada como combustível no inverno. Na porta, notamos uma mesa feita com uma tabua apoiada em duas latas. Continha apenas três pirâmides de tomates. Parecia uma expressão modesta para evitar a inveja. Olho gordo! A soleira não estava em nível com o piso. Um muro de meio metro de altura bloqueava a entrada, por trás, uma jovem mulher, Mariam. Rosto bonito, mal cuidado… Explicamos o propósito da visita. A expressão na face mudou. Ira nos olhos. Fez um gesto de desrespeito com a mão esquerda. Gritando, parecia enlouquecida a nos mandar embora. Varias mulheres se aproximaram. Vociferavam em direção a Mariam. Mais sinais de desrespeito. Uma batalha de tomates começou, As pirâmides desapareceram. Mariam fechou a porta. Batemos em retirada. As mulheres nos seguiram iradas…

Qual a causa da disputa? Mariam havia vencido, nos explicou o interprete. Cresceu de verdureira a micro-empresaria. Vivia só, o marido era um zabbaleen no Cairo. Seus desafetos temiam que ela tomasse seus maridos, por ser afluente; outras a acusavam de mau exemplo para suas filhas e de comportar-se como homem. Um inferno na terra. Uma mistura de mudança e continuidade… Decidimos partir. Uma mulher montada num burrinho passou silenciosamente, rosto virado na direção oposta. Mais uma Maria escapando dos seus algozes… Inshallah!

Egito 1987