A grandiosidade das pirâmides, vista do alto no momento da aterrissagem, oferece uma reverência silenciosa, como se o tempo suspendesse sua marcha por um instante. Mas essa paz é rapidamente consumida pelo caos que reina nas ruas do Cairo. A caminho do hotel, fomos engolidos pela violência do trânsito: motoristas rudes e impacientes cruzavam nosso caminho como se suas vidas dependessem de uma força maior, invisível. Nosso carro sofreu três batidas, e ninguém sequer olhou. O motorista, com um gesto quase poético de resignação, ergueu as mãos ao céu: “Ma’alesh… Inshallah.” Foi assim que começamos a aprender as palavras que, nos dias seguintes, soariam como um mantra, um resumo do imponderável da vida egípcia.
O Egito que percorremos era o de Naguib Mahfouz – uma terra de extremos, onde mudança e continuidade se entrelaçam em uma dança incessante. Por quatro semanas, essa dicotomia foi nossa companheira enquanto visitávamos comunidades cristãs cópticas, herdeiras de uma fé que remonta a São Marcos e ao ano 61 d.C. Apesar de marginalizados, sua resiliência e fé permaneciam inabaláveis.
Nas ruas do Cairo, carroças de burros avançavam lentamente, carregadas de lixo. Elas recolhiam quase um terço dos resíduos que a cidade despeja em suas ruas. O odor acre se misturava ao calor sufocante, e a visão dos “zabbaleen”, catadores de lixo, era uma cruel representação de uma sobrevivência invisível. Eram cerca de 40 mil, a maioria cristãos cópticos, vivendo entre montanhas de detritos, como pirâmides erigidas pela desigualdade. Homens, mulheres e crianças, num ciclo interminável de coleta e separação, prestavam um serviço essencial, mas eram ignorados, marginalizados por seus costumes e por sua condição de minoria.
Nosso trabalho ali era tentar abrir novas portas, apoiar projetos de saúde para mães e crianças e, acima de tudo, melhorar a situação das mulheres. A fundação da Irmã Emmanuelle, uma mulher cuja fé e ações lembravam a de Madre Teresa de Calcutá, era nossa parceira nessa missão. Mas entre os zabbaleen, o medo prevalecia. Temiam que grandes corporações tomassem o controle de sua única fonte de renda. Garantimos apoio, oferecendo meios para a formação de cooperativas e a criação de pequenos negócios.
Do Cairo a Assiut, carregávamos o cheiro do lixo impregnado em nossas roupas e memórias. Assiut, sagrada para cristãos e muçulmanos, abrigou a Sagrada Família em sua fuga de Herodes. Esse era nosso próximo destino, onde encontraríamos Mariam – ou Maria, em árabe. O projeto de apoio às verdureiras a havia transformado de uma simples comerciante em uma microempresária. Seu progresso era notável.
Mariam nos recebeu em sua casa de adobe, simples, mas repleta de significado. Seu quintal, onde secava grãos ao sol, refletia uma vida de trabalho duro. Na entrada, uma mesa improvisada exibia três pirâmides de tomates, um símbolo modesto de resistência. No entanto, ao entender o motivo da nossa visita, seu semblante acolhedor rapidamente se transformou. Seus olhos, antes calorosos, foram tomados por uma ira profunda. Com gestos bruscos, nos mandou embora, gritando palavras que não compreendíamos. Logo, outras mulheres se uniram a ela, e o tumulto começou. Tomates voaram, e as pirâmides de frutas desmoronaram no ar. Mariam fechou a porta com violência, e nós nos retiramos sob o olhar severo de suas vizinhas.
Mais tarde, nosso intérprete nos explicou o que havia ocorrido. Mariam, ao crescer de verdureira a empresária, havia despertado medos antigos entre as mulheres da vila. Temiam que ela roubasse seus maridos, ou que seu exemplo encorajasse suas filhas a desafiar as normas. Naquele pequeno ato de rebeldia, Mariam personificava a luta de tantas outras: mulheres que ousam crescer, mesmo que o preço seja alto.
Ao deixarmos o vilarejo, cruzamos com uma mulher montada em um burro, seu rosto voltado para o horizonte, em silêncio. Mais uma Maria, talvez, tentando escapar das amarras de um mundo que ainda não está pronto para as suas asas. Inshallah.
Palmarí H. de Lucena – Egito, 1987