Fios elétricos entrelaçados, imóveis em péssimo estado de conservação, veículos estacionados ilegalmente, alguns simplesmente descartados. Ambiente pouco propício para uma fotografia de qualidade ou nossa viagem pela alameda da memória. Decadência social, cultural e patrimonial nos cercava. Crônica visual sobre a vida e a morte da comunidade onde passamos parte da nossa adolescência. Sonhos que começaram aqui, transformando-se na realidade profética da nossa vida em lugares distantes
Sobrado verde na esquina da Beaurepaire Rohane Rua da República, antiga Farmácia Minerva. Vivíamos no primeiro andar durante os anos da Guerra da Coreia. Acordávamos no nosso mundo pacífico, o centro da cidade. Calçadas sempre ocupadas por conhecidos, o dia durava mais de oito horas. Famílias, comerciantes e trabalhadores vivendo ou trabalhando em imóveis de usos múltiplos, sem distinções ou exclusões. Éramos todos vizinhos.
Voltamos à uma pequena rua, playground doublé de campo de futebol, lugar onde todos brincavam. Casarão da esquina abandonado, parcialmente destruído, hoje ocupado por moradores de rua. Reconhecemos outras casas sobrevivendo precariamente como pequenas oficinas e depósitos. Estranhos nos observavam cautelosamente. Homem com um crachá, “deficiente mental”, se aproximou. Braço em riste, nos mostrou uma velha máquina tipográfica plantada firmemente na calçada de uma pequena gráfica. Abandonada porque o filho do dono amputara um braço enquanto operava a máquina. Algo diabólico, sugeriu.
Ajudante de tipógrafo, nosso primeiro emprego, castigo por conta de um desempenho escolar medíocre. Aprenderíamos um ofício, caso tais desafios não fossem superados na juventude. Tarefa confiada a um tipógrafo conhecido como “Júlio Morcego”, por conta de sua aparência estranha. Limpávamos e organizávamos tipos em pequenas gavetas, imprimíamos folhetos, recibos de lojas e pules de bicho, tudo sob a mira crítica do nosso mentor. Música mecânica quebrava a monotonia, cheiro de tinta permeava o pequeno espaço. Longe do rigor das aulas de reforço para o exame de segunda época, dias felizes. Única lembrança que sobrevivera, a máquina na calçada era a nossa máquina.
Palmari H. de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores