Ai que sodade de Cesária

Parcialmente escondido pela nevada que castigava Istambul, um solitário bistrô com poucas mesas ocupadas. Lugar ideal para absorver a história e a arte que tanto nos mesmerizara enquanto visitávamos a Mesquita Azul e a Basílica de Hagia Sofia. Música da Anatólia tocada discretamente no sistema de som, contribuía para nossa sensação de devaneio. O repertório musical mudou tempestivamente. ¨Cesária Évora¨, anunciou o gerente com um sorriso tímido, quase apologético, e um gesto dramático, a mão direita sobre o coração. ¨Miss Perfumado¨ havia conquistado o mundo com sua melancolia e a sodade de um mar azul bem distante… bem longe de São Tomé.

Desoladas e castigadas pelas ventanias fortes e por séculos de opressão colonial portuguesa, as ilhas do arquipélago de Cabo Verde sofreram um empobrecimento tão profundo, que mais de um terço de sua população emigrou para o exterior. As mornas que Cesária Évora cantava serviam de testemunhas e ao mesmo tempo de protesto contra a pobreza do seu povo. Rosto severo como se enfadada com as coisas do mundo ao seu redor, sempre enfocada em sua missão. A inimitável simplicidade de sua música confundia a muitos e agradava a todos ao mesmo tempo. Uma diva com os pés no chão – literalmente sem glamour, choques ou fricotes.

Ironicamente a diáspora cabo-verdiana, descendentes daqueles que o escritor Manuel Lopes chamou de ¨flagelados do vento leste¨, foram os primeiros a projetá-la na Europa. Espalhando a mensagem sobre povos vitimados pela miséria causada pela escassez de chuva e cantando as belezas do seu país. Cabo Verde era para Cesária ¨[…] uma árvore frondosa sumida no meio do Atlântico, seus galhos espalhando-se pelo mundo […]¨. Foram eles que a levaram aos quatros cantos da terra.

Cidade de Nova Iorque, Beacon Theatre, Novembro de 2001. Ainda traumatizados pelo 11 de Setembro, a plateia aguardava ansiosamente o inicio da apresentação de Cesária Évora. Entrou sutilmente, começou a cantar quase despercebida, indumentária simples e aparência austera. Estendendo as mãos acariciantes das mornas sobre sofrimento, decepções e amor pela sua terra. Colo musical para uma cidade ainda vivendo a catarse de sua tragédia. Quase total silêncio.

Repentinamente, sentou-se a uma pequena mesa, tomou dois goles de café e acendeu um cigarro, como se estivesse em sua sala de estar. Permaneceu em silêncio por quase dez minutos, alheia ao mundo ao seu redor, ouvindo a banda tocar. Recomeçou… Finalizou com uma canção mais cubana do que uma morna tradicional. Público aplaudindo de pé, a diva aceitando o reconhecimento sem mudar de expressão ou fazer gestos de agradecimento. Deixou escapar um quase sorriso no canto da boca. . ¨Obrigada. Terminou. Obrigada¨. Caminhou pausadamente em direção aos bastidores. Ai que sodade de Cesária…

Palmarí H de Lucena, membro da Uniao Brasileira de Escritores