Conclui minha missão na Comissão Econômica das Nações Unidas para a África, na Etiópia. Estava no Saguão de embarque do aeroporto de Bolé, militares em formação de combate apareceram subitamente nas portas laterais do edifício. Competentes, nervosos, alertas. Marcharam em forma leque na direção de um dos portões de embarque. Abanando as cinzas que cobriam as brasas latentes da violência inesperada. Sentamos no chão, costas contra a parede, protegendo-nos da eventualidade de um enfrentamento armado.
Homens em agbadás nigerianos emergiram de uma das aeronaves. Congregaram-se em frente ao guichê do portão, apontando para o mostruário eletrônico: LAGOS – CANCELADO. Discussão tensa com os soldados e o pessoal de terra. Dedos em riste, trocando impropérios e ameaças. Correram intempestivamente em direção a outros portões. Movimentos coordenados, precisão militar. “Terroristas” anunciou um grito desesperado.
Grupo de islâmicos nigerianos regressado da peregrinação do Hadj, em Meca, havia tomado controle de cinco aeronaves. Recusavam-se a desocupá-las, demandando que uma delas fosse designada para o vôo de Lagos. Haviam chegado a um perigoso impasse. As autoridades cancelaram todos os vôos, alegando condições meteorológicas precárias. Chovia torrencialmente. Aguardávamos um taxi, quando ouvimos o ruído distante de uma aeronave decolando. Vôo especial para Lagos, aprovado pelas autoridades por questão de segurança. Decisão pouco salomônica na terra do Rei Salomão. Alá é grande!
Cânticos da igreja ortodoxa próxima ao hotel. Chuvas copiosas continuavam, erodindo o solo, assoreando os rios e nascentes. O povo da Rainha de Sabá, guardiões das Tábuas com os Dez Mandamentos, morrendo de fome e miséria. A sabedoria do passado ofuscando a ignomínia de um presente vivido na crueldade da escuridão. ¨[…] luz veio ao mundo […] os homens amaram mais as trevas do que a luz. ¨
Esperávamos pacientemente em filas duplas, quando nos deparamos com um ex-colega de trabalho. Conversamos descontraidamente. Comiseramos sobre demoras nos aeroportos africanos. Cético por natureza, ele transformava eventos trágicos em estórias, contadas com uma boa dose de senso de humor. Gargalhadas, gargalhadas. Comediante stand-up, sua profissão, quando respondeu a um apelo a voluntários para trabalhar no combate a fome na África. Nunca mais voltou ao palco.
Organizava grupos vocais. Ensinava doo-wop, um estilo vocal harmonioso e suave em que muitas vezes os cantores faziam sons com a boca imitando os próprios instrumentos musicais, repetindo frequentemente onomatopeias. Meninos de rua, refugiados, órfãos de guerra cantando músicas das paradas de sucessos. Contou-nos sua historia favorita. Tempestade de areia forçara seu vôo para um pequeno aeroporto no Sul do Sudão. Carga de alimentos e remédios para vítimas da guerra e da seca. O som de uma canção quebrou a tensão do momento. Vozes infantis cantando a cappella no estilo doo-wop do Brooklyn. ¨ […] Sh-boom sh-boom Ya-da-da Da-da-da Da […]¨. Grupo de crianças correndo em direção à aeronave reconheceu o homem branco que gostava de cantar. ¨”Life could be a dream” (A vida poderia ser um sonho), assim chamava-se a canção. Pelo menos naquele dia voltara ao palco, comentou nosso amigo. Gargalhadas, gargalhadas. Aplausos.
Palmarí H de Lucena palmari@gmail.com