À toa em uma manhã de saudade

À toa em uma manhã de saudade

Começamos o dia embalados por uma saudade doce, daquelas que abraçam o peito e apertam devagarinho, como o toque de uma melodia distante. O dobrado militar, executado com precisão pela banda dos Fuzileiros Navais, ressoava na sala como se viesse direto de um quartel enfeitado com bandeiras ao vento. Cortesia do YouTube, é verdade, mas o som era tão palpável que fechávamos os olhos e éramos transportados para os sertões onde a Asa Branca cruzava o céu. A música nos carregava até as margens do lago azul, onde o Cisne Branco dançava sob uma lua prateada. Lágrimas se acumulavam discretamente no canto dos olhos, transbordando numa cascata salgada que lavava o rosto da memória, enquanto um sorriso melancólico se desenhava, fruto de uma lembrança que jamais nos abandona.

Quantas bandas vimos passar? Aquelas que cruzaram nossas vidas em tardes quentes de domingo, marchando em silêncio pelas ruas empoeiradas. Lembro-me de um desfile: fileiras de homens em verde oliva, passos firmes guiados por um vulto que marchava à frente, olhos atentos e comando inquestionável. Um jovem franzino, carregando um surdo quase maior que ele próprio, girava a baqueta no ar em movimentos ritmados até desferir um golpe certeiro — “bum” —, e o som reverberava como um trovão no meio da praça. Era o sinal: palhetas, embocaduras e peles de tambores despertavam em uníssono, formando uma sinfonia perfeita. Naquela cadência que nossos corações reconheceram antes mesmo de saber o que era música, éramos transportados ao mundo mágico que o nosso pai habitava: a banda de música do 15º Regimento de Infantaria.

Lá estava ele, nosso pai, com seu trombone empunhado como se fosse uma espada de paz. O brilho de seu suor competia com o lustro das campânulas das tubas e dos bombardinos. Seguíamos a banda, encantados pelo som que ecoava pelos anos de nossa infância, guiados pela lira dourada que reluzia à frente do pelotão. Centurião músico, um herói sem capa, tocando o ritmo das nossas vidas, até que, um dia, a marcha cessou…

As bandas passaram, desapareceram nas brumas do tempo. Os dobrados que antes significavam alegria e orgulho foram tomados por um novo significado, pesado e sombrio, símbolos do poder ilegítimo que silenciava sonhos e esperanças. O que era doce tornou-se amargo. Duas décadas de nervos à flor da pele, o medo infiltrado nas notas que um dia foram celebração. Tudo passou… ou quase tudo. Porque a dor, essa não se desfez como os ecos daqueles dobrados de outrora. Nunca mais sentimos aquela alegria genuína que apenas uma banda de música poderia despertar.

E então, folheando o jornal, encontramos uma crônica sobre o centésimo aniversário de um pai. Fez-nos lembrar que o nosso, se ainda estivesse entre nós, alcançaria essa idade em abril. Partira cedo, bem antes do que gostaríamos, mas as músicas que ele tocou sobreviveram a ele. Desafiando o tempo, os sons de seus dobrados ecoavam mesmo diante da febre dos sintetizadores e da pressa digital de um mundo que esquece rápido demais. Décadas após sua partida, ainda ouvíamos, em algum canto da memória, o ressoar dos dobrados de nossa infância — aqueles que nunca se foram de verdade, pois continuam a embalar nossos passos por esta longa estrada da saudade.

Palmarí H. de Lucena , João Pessoa, 07 de março de 2013