O engraxate Bonzão conversava em tom confidencial com o carroceiro Chapa 11, seu amigo de longos anos. Ferrenhamente leais ao bloco de índios a que pertenciam, consideravam uma situação que ameaçava o futuro carnavalesco da agremiação. Maria Loura, a namorada do engraxate, intrometendo-se em assuntos tribais, causando um pernicioso mal-entendido entre os dois amigos. Funcionária de uma ¨pensão de mulheres¨ na Silva Jardim, dizia-se possuir um olho clínico para possíveis traições masculinas. Exigiu que o amado não desfilasse no carnaval, após um bate-boca enciumado e dias de emburramento passional. O guerreiro sucumbiu as demandas da amada, esforço do amigo parecia inútil.
O desfile carnavalesco estava prestes a começar na Rua Duque de Caxias, culminaria com demonstrações de virilidade tribal diante do Palácio do Governo. Bombos e flautas, som tribal invadiu o Corso. Cocares de pluma de pavão e bolas de arvore de Natal. Tangas de penas multicoloridas, faces e corpos pintados. Os temidos bodoques com flechas afiadas, lanças e outros instrumentos de guerra prontos para o embate carnavalesco. Turbinada pelo esplendor etílico e orgulho tribal, o bloco do Bonzão era considerado o vencedor peremptório da categoria.
Maria Raposa procurava Bonzão entre os guerreiros. Suspeitava que houvesse retornado ao seio tribal ou talvez sucumbido aos avanços de Dorinha, sua maior rival. Grupo de guerreiros formou um círculo protetor ao redor do Bonzão. Plumagem e corpos suados não foram suficientes para camuflá-lo do olhar aguçado da mulher. Gritos roucos, cheios de ira, abafados pela balburdia ao redor. Bonzãooooooooooo! Cascata de impropérios e ameaças…
Frustrada pela falta de resposta do amado, invadiu o perímetro do bloco, distribuindo empurrões e pontapés pelo caminho. Chegou ao seu alvo com incrível rapidez, atacou imediatamente. O guerreiro mal havia notado sua presença, quando foi atingido por um golpe baixo. Enquanto agonizava no chão, pisoteou as bolas de vidro do cocar. Depenou em seguida a plumagem da tanga e removeu os colares. Deixou o guerreiro vestido unicamente por uma cueca de tamanho inadequado para salvá-lo de um flagrante por exposição obscena. Maria Loura seguiu sorrateiramente na direção oposta do Corso, som de suspiros suprimidos por risadas histéricas.
O guerreiro escapou da ignomínia vestido em uma tanga improvisada, exemplares de um jornal carnavalesco atados ao redor da cintura com um barbante. Partiu apressadamente sob o som de apupos e uma sonora vaia. O Chapa 11 o encontrou na parte posterior do Palácio do Governo, para transportá-lo até a sua modesta moradia na Ilha do Bispo. Ao chegar em casa, destruiu todos os vestígios da presença de Maria Loura. Defumador Caboclo, vidro de água oxigenada, bibelôs e uma ampola de água de patchuli. Contemplou longamente o último item, uma foto cortada de uma página policial. Maria José Nascimento, vulgo Maria Loura, meretriz, presa por desordem e desacato à autoridade na Rua Tenente Retumba. Com a brasa do cigarro, queimou os olhos e depois a boca que tanto beijara.
Acordou tarde no dia seguinte, Chapa 11 estava a sua espera. Desclassificaram o bloco devido ao imbróglio, decidiram expulsar o Bonzão por ¨falta de moral¨ e dano a reputação da tribo carnavalesca. Morte súbita nos anais do carnaval de João Pessoa, sem nenhum post-mortem ou elogia as heróicos conquistas de alhures.
Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileiro de Escritores