A saga do corneteiro e do mineiro do Atacama…

Médico completou a avaliação clínica, resultados dos exames de laboratório, laudos de raios-x e ECG. Com um pigarro, parte de rotina, pediu nossa atenção: “Apto”. “O senhor pode viver e trabalhar na altitude de La Paz”, afirmou casualmente, como se viver a 3.660 metros acima do mar, fosse um pequeno desafio.

Aterrissagem em La Paz. A estranha austeridade da neve glacial do Monte Ilimani, contrastando com a diversidade das edificações da cidade que sobrevoávamos. Jamais esqueceremos a lassidão envolvente que sentimos ao desembarcar.

Escritório do programa de ajuda humanitária às comunidades afetadas por “El Niño”. Corneta Mamani, pequena rua em forma de L, próxima à universidade; o centro do nosso universo. Enfrentando as incertezas geradas pela instabilidade política e econômica, corrupção e pobreza, adicionadas à dose diária de “soroche”, mal da altura. Imersos no caldeirão do subdesenvolvimento boliviano e em uma atmosfera rarefeita, sobrevivemos doze meses. Cumprimos nossa missão. Partimos. Levamos poucas lembranças da nossa passagem pelos Andes, afora a própria paisagem e pessoas amigas…

Carlos Mamani, 24, o quarto mineiro a ser resgatado, saiu da cápsula Fênix 2 às 4:30 horas do dia 14 de outubro de 2010. Boliviano, o único estrangeiro entre os trinta e três mineiros encurralados desde 05 de Agosto, a 700 metros de profundidade, na mina chilena de San José. Herói nacional do povo boliviano… salvo por chilenos. O sobrenome nos lembrou da rua, onde trabalhamos vinte e cinco anos atrás. Corneta Mamani, assim chamada em homenagem a um herói de guerra boliviano. Nada sabíamos sobre as façanhas que justificaram o galardão. Decidimos averiguar.

Companhias anglo-chilenas recusaram-se a pagar um aumento do imposto de exportação sobre o salitre extraído do Deserto de Atacama, na província boliviana de Antafogasta. Empresas confiscadas e postas à venda, reação imediata. A província foi invadida por tropas chilenas, dando inicio à Guerra do Pacífico. Com apoio de uma forte marinha e de empresários ingleses, as tropas chilenas assenhoraram-se rapidamente do território boliviano. As riquezas minerais do deserto e a costa do Pacifico, perdidas para o Chile.

Pascual Mamani, o corneteiro, combateu na guerra. Tropas bolivianas, apoiadas por seus aliados peruanos, lograram escalar um morro e capturar varias peças de artilharia chilena. 14 de Novembro de 1879. Enfrentado forças numericamente superiores, causaram muitas baixas. Ensanguentado, perna fraturada, o corneteiro montou-se em um canhão chileno, tocando seu instrumento, pedindo reforços. Desorganizados, bateram em retirada. Morreu assim. Índio aimará, herói pouco reconhecido, morto em combate por soldados chilenos.

A saga do corneteiro Pascual e do mineiro Carlos, começou e terminou no Deserto de Atacama. Pontos extremos de uma cronologia de vicissitudes e miséria, causados pela derrota da Bolívia. Separados por cento e trinta anos de história, mas vitimas da mesma dicotomia de opressão e miséria que subjugaram os povos indígenas na conquista e que os mantêm na pobreza ainda hoje…

Mamani, o herói da guerra, defendendo a possessão de uma província rica em minerais, explorado por companhias estrangeiras. Mineiros indígenas, trabalhando em condições de semi-escravos. Seu povo morrendo na guerra e nas minas. E o outro Mamani? Votou com os pés. Escapou da pobreza boliviana, atravessando a fronteira para trabalhar nas minas do Atacama. Resgatado milagrosamente das entranhas da terra, sobreviveu para contar a história e colher os frutos do reality show produzido magistralmente pela mídia internacional.

Seduzidos pelo evento e potencial midiático, nos esquecemos de questionar as péssimas condições de trabalho enfrentadas pelos mineiros ou de deteminar a culpabilidade dos empresários e oficiais do governo responsáveis pelo desastre.

Os Atacamas e Aimarás, corneteiros ou mineiors, eternas vitimas… Agora, em real time e HD.