A nova travessia de Leão XIV: nem liberalismo cego, nem estatismo redentor

A nova travessia de Leão XIV: nem liberalismo cego, nem estatismo redentor

Ao escolher o nome de Leão XIV, o novo papa acena, conscientemente ou não, para um legado denso e inquieto: o de Leão XIII e sua encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891. Ali se lançavam as bases do que viria a ser a Doutrina Social da Igreja, com críticas tanto ao laissez-faire que sacrificava o trabalhador quanto ao igualitarismo forçado do socialismo que dissolvia a dignidade do indivíduo. Um gesto ousado para sua época — e ainda mais relevante hoje.

A tradição social católica jamais coube nos moldes binários da política contemporânea. Nem no rótulo fácil do “progressismo” nem na rigidez do “conservadorismo”. Leão XIII reconheceu o direito à propriedade privada e a livre iniciativa, mas foi firme ao defender os sindicatos e a justiça social. Rejeitou o Estado invasivo que se intromete na vida familiar, mas também não idealizou o mercado como salvador automático da humanidade.

Seus sucessores mantiveram esse equilíbrio. João Paulo II, vindo da resistência anticomunista da Polônia, reconheceu o papel positivo do mercado, mas alertou contra o “capitalismo radical” que transforma tudo — inclusive o ser humano — em mercadoria descartável. Francisco, por sua vez, embora muitas vezes lido de forma simplista como anticapitalista, já afirmou que “não condena o capitalismo” e defende a produção de riqueza como instrumento de justiça, desde que voltada ao bem comum.

Há, portanto, um fio invisível que une esses papas: a ideia de que tanto o mercado quanto o Estado devem servir ao ser humano — e nunca o contrário. Em tempos de polarização, esse ensinamento parece provocativo. Ele não oferece respostas prontas, mas convida ao debate ético sobre meios e fins.

A Doutrina Social da Igreja é, nesse sentido, uma bússola, não um mapa. Diante do dilema da saúde pública, por exemplo, ela afirma que a sociedade tem o dever de cuidar da saúde de todos, mas não dita se isso se deve fazer via sistemas universais ou iniciativas descentralizadas. Exige responsabilidade e solidariedade, sem impor um modelo único. O mesmo vale para políticas de combate à pobreza, regulação ambiental ou organização do trabalho.

Ao contrário de ideologias que prometem o paraíso por decreto ou a redenção pelo lucro, a visão católica admite a complexidade do mundo. Ela parte do reconhecimento de uma verdade incômoda: nossa tendência ao egoísmo e à indiferença. Por isso, insiste na caridade, na justiça e no dever moral de amparar os que sofrem. Sem essa base, qualquer política — seja ela progressista ou liberal — acaba servindo aos fortes e esquecendo os frágeis.

Cabe a Leão XIV, agora, o desafio de manter viva essa tradição sem se deixar capturar pelos slogans do tempo presente. Que ele não se limite a repetir fórmulas do passado, mas encarne a coragem de perguntar o que poucos ainda ousam: o que significa, hoje, amar o próximo como a si mesmo?

Por Palmarí H. de Lucena