A morte do campo santo

Pessoas vestidas em negro de pé sobre um monte de areia de uma cova recém-cavada. Cheiro de terra fresca misturado com o aroma pungente das flores das coroas fúnebres. Tristeza viajando com a brisa, cantos tímidos dos pássaros acomodando-se à lassidão do descanso eterno. Ruído de pás movendo terra, ocasionalmente um torrão de barro. Visão limitada pelas pernas dos adultos, um menino tentava observar a cena. O ataúde desapareceu, os coveiros partiram. Seu avô querido não era mais. Queria correr, desaparecer. Notou frutos dos castanheirosno chão. Chutou alguns distraidamente. Os adultos caminhavam juntos, bem juntos, como se colados pela tristeza. Dor comum ofuscando a beleza e a exuberância dos mausoléus da alameda central. Chegaram ao portal do Cemitério do Senhor da Boa Sentença. Abraços. Partiram sem nunca olhar para trás.

Quatro décadas após o enterro, voltamos. Carro estacionado próximo à Praça da Pedra, seguimos pela Rua São Miguel em direção ao cemitério. Lembranças de uma frase pichada com letras e cores iradas do protesto: Pão, paz, terra e liberdade. Paramos diante do que restara do nosso cinema favorito. Imaginamos em silêncio os sinos da Igreja da Conceição anunciando a passagem dos cortejos fúnebres. Sentindo a fragrância enfadonha de incenso permeando a procissão com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Tudo havia mudado.

Estávamos no palco central de uma tragédia urbana, a morte prematura da cidade antiga. Progresso desordenado, indiferente à nossa herança histórica, conspirava incontrolavelmente. Tudo e todos os vivos seguiam como uma enxurrada em direção ao mar. ¨[…] A praia vai matar a cidade, é uma questão de tempo […]¨, nos dizia profeticamente o Tenente Lucena – recordação súbita diante do seu mausoléu. Argola e artefatos de bronze haviam sido removidos por usurpadores. Vandalismo, abandono e lixo – garras implacáveis esculpidas nos caminhos e nas alamedas. O cemitério havia se transformado no corpo e na sombra da moribunda cidade, vivos e mortos morrendo juntos.

Com o advento das perdas biológicas de outros entes queridos, as visitas ao cemitério tornaram-se mais frequentes. Os tempos que havíamos compartilhado e a aproximação cultural das nossas faixas etárias renovavam a urgência de mantê-los vivos nas nossas memórias e tradições. O cemitério havia se transformado em uma enorme terra sem dono, nossos antepassados a mercê de pessoas indiferentes. Os mausoléus, prendas fáceis da luta de classe que continua após a morte.

Cenas na televisão e crônicas recentes denunciaram o abandono e a corrupção que impera no Cemitério do Senhor da Boa Sentença. A criminalidade que engolfou o pequeno cortejo fúnebre no sepultamento de uma ilustre paraibana expôs a triste verdade que gostaríamos de esquecer ou negar. Lugar de descanso dos nossos antepassados e repositório da nossa história, o campo santo está morrendo, vítima do apetite insaciável de tudo aquilo que desafia ou subestima os princípios básicos da nossa tradição e cultura. Os atos de vandalismo e corrupção que ocorrem no cemitério são crimes, ferem os princípios de inviolabilidade do cadáver e a Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos remetem a uma atemporal Antígona que, desde a antiguidade clássica e em nome de leis superiores e não escritas, luta por dar digna sepultura aos membros da sua família…

Palmarí H. de Lucena, membro da União Brasileira de Escritores