O Liceu, o Ponto de Cem Reis e o Pavilhão do Chá eram as pontas do Triângulo das Bermudas que naveguei na minha juventude. Perdia-me nele todas as tardes. Longe dos olhos que pudessem estranhar minha ausência das aulas, no meio do dia, de vez em quando. A jornada diária começava em frente do relógio do Liceu. Nunca voltava.
Descia a ladeira em direção a Lagoa. Um lago mágico, rodeado de cores e possibilidades. Um cigarro ou um trago longo, dependendo do que restava da compra no fiteiro. Enchia os pulmões de ar, como se estivesse fazendo yoga. Um suspiro seguido da expressão ah, l’ennui! Repetindo a palavra mágica que havia aprendido no livro de G. Mauger, Cours de Langue et de Civilisation Française. Uma síntese perfeita do meu estado mental. Das contradições da minha juventude. Estava prestes a ser reprovado em Francês…
O Cassino, sempre cheio de velhos importantes e políticos, era terra incógnita. Passava rápido por lá. Caminhava até meu banco favorito, próximo aos bambus. Local discreto para gazear aula. Ler um livro, sem pensar na minha nêmese, Monseigneur G. Mauger. Dar um beijo na namorada; o romance du jour. Os “bambus” era o meu espaço zen. Longe de tudo. Sonhando. Vivendo o duelo entre os personagens principais da Montanha Mágica de Thomas Mann. O italiano Settembrini apresentando-se ao personagem central do livro, o jovem Hans Castrop, como um humanista, portador das melhores tradições do Iluminismo e do livre–pensar. Seu rival, Naphta, um ex-jesuíta sisudo, dogmático. A encarnação viva da contra-reforma, da censura. Imaginava a professora de Francês como minha Naphta.
Caminhava até a Rua Padre Meira. Parava atrás da “bomba de gasolina”, na esquina da Rua Diogo Velho. Um pequeno ato de rebelião de adolescente. Girava a manivela do barril de óleo, deixando o combustível escorrer sem controle. Satisfeito, atravessava a rua. Parava na calçada de uma casa com um cão enorme. Le grand chien! Desafiava o canino com pedrinhas de cascalho. A reposta era imediata. Não havia medo, estávamos atrás de grades. Subia a ladeira em direção ao Ponto de Cem Reis. O corpo pulsando com adrenalina.
Chegava à esquina da Praça 1817. Começava os preparativos para minha dose diária de frisson. Sentia-me como um ator do estúdio de Lee Strasberg, antes de começar a representação da minha vida. Entrava totalmente no personagem, uma mistura de James Dean e “Moi”. Os cravos e espinhas desapareciam. A moça na janela me esperava. Um sorriso aparecia no seu rosto pálido ao notar minha presença. Não era um sorriso ambivalente, muito menos um de alegria, mas um sorriso melancólico, um sorriso que previa tristezas. As sobrancelhas formavam dois arcos perfeitos. Agitava-se. Parecia que saltitava atrás da janela. Passava. Não trocávamos uma palavra nem dizíamos adeus. Não importava os detalhes. A moça era uma visão.
Sentava no meu banco favorito da Praça João Pessoa. Um escafandrista voltando à superfície. Evitando a descompressão rápida. Do outro lado da rua, o prédio do Jornal A União. Observava o vai e vem de homens com pressa, todos fumando. O odor nocivo das fundições dos linotipos invadindo a calçada. Alguns conversavam animadamente sobre uma matéria, um furo ou algo mais mundano. O chope da Casa dos Frios. Futebol. Mulheres. Um deles fumava um cachimbo distraidamente, sem pressa. O dono da esquina. Ah, l’ennui! Hora do sorvete no Pavilhão do Chá. Fim da viagem. Terra firma.
Fui reprovado em Francês naquele ano. Não consegui lembrar o ultimo verso do poema “Chanson d’Automne” de Paul Verlaine, na prova oral. A moça da janela desapareceu. Nunca mais esqueci.
“… Et je m’en vais/Au vent mauvais/Qui m’emporte/Deçà, dela/Pareil à la/Feuille morte…”
João Pessoa 1956