No voo de retorno aos Estados Unidos, jovens missionários mórmons voltavam à rotina ordenada de suas vidas. Silenciosos, alinhados em suas camisas brancas e gravatas pretas, traziam no semblante a serenidade de quem cumpriu uma missão. Mas, destoando desse quadro de compostura, um brasileiro falante e expansivo se destacava. Como uma peça fora do lugar, ele falava alto, lançava perguntas provocativas e tentava, sem pudor, arrancar reações dos jovens missionários, que mantinham sua postura imperturbável.
— E aí, vai casar-se com uma americana? Ou quem sabe uma brasileira, hein? — provocava ele, rindo, insistindo em quebrar o gelo. Diante das respostas evasivas, o brasileiro concluía, com um sorriso maroto e um piscar de olhos cúmplice, que o rapaz havia aprendido bem o “jeitinho” local. Para ele, essa era uma conquista: absorver a malícia, o jogo de cintura, como se fosse uma virtude digna de admiração.
Por trás dessa cena, revela-se uma face mais sombria de um traço que muitos de nós, brasileiros, insistimos em glorificar: o jeitinho. Celebramos, quase com orgulho, nossa suposta capacidade inata de improvisação e de encontrar soluções rápidas, driblando obstáculos impostos pela burocracia ou pela lentidão do sistema. O que surge, inicialmente, como um instinto de sobrevivência diante de um Estado ineficaz, gradualmente se corrompe e se enraíza como uma cultura de permissividade.
Essa cumplicidade silenciosa entre o cidadão comum e as práticas corruptas, muitas vezes atribuída apenas à classe política, revela uma simbiose perversa. O “jeitinho brasileiro”, tão enaltecido em nossa cultura, nada mais é do que um eufemismo para pequenas corrupções cotidianas. Essas infrações “menores” são tratadas como inocentes ou, no mínimo, como aceitáveis. Afinal, que mal há em furar uma fila? Em sonegar um imposto aqui ou acolá? Ou em molhar a mão do guarda para escapar de uma multa? São apenas “escapadinhas”, justificamos, enquanto lançamos toda a indignação moral sobre os políticos.
Esse padrão de comportamento não é apenas uma peculiaridade cultural, mas um sintoma de algo mais profundo: a erosão do senso de justiça e a relativização da ética. Ao celebrar o jeitinho, instituímos uma moralidade dual, onde o que é errado para o outro se torna, de repente, aceitável para nós. Criamos, assim, uma cortina de fumaça que encobre a verdadeira cumplicidade entre a corrupção do cidadão comum e a dos governantes. Enquanto nos revoltamos com os escândalos que sacodem os altos escalões, mantemos nossa indulgência em relação às “malandragens” que realizamos diariamente.
O mais alarmante é que essa aceitação social do jeitinho cria uma base sólida para a manutenção de práticas corruptas nas esferas de poder. Se o cidadão comum se permite burlar regras quando lhe é conveniente, qual a surpresa quando aqueles que nos representam fazem o mesmo em escalas maiores? Essa cultura da transgressão trivial é o terreno fértil que sustenta a perpetuação de um sistema político corroído.
Portanto, a questão que devemos nos fazer não é apenas se o jeitinho é uma “virtude” brasileira, mas se, ao exaltá-lo, não estamos condenando nossa própria sociedade a um ciclo interminável de corrupção e descrédito nas instituições. Ao relativizar pequenas infrações, enfraquecemos, silenciosamente, os alicerces de um Estado que deveria ser justo para todos. Enquanto aplaudirmos o malandro como herói e o jeitinho como talento, seguiremos presos em um labirinto de cinismo e autoengano que, no fim das contas, prejudica a todos nós.
Palmari H. de Lucena