Vivemos tempos em que a pluralidade e o respeito ao diverso se impõem como princípios indispensáveis para a coexistência democrática. No centro dessa estrutura encontra-se a laicidade, um pilar histórico que, desde a Proclamação da República, assegura que o Estado brasileiro se mantenha neutro em questões religiosas, promovendo uma esfera pública que respeite as liberdades fundamentais de todos.
Contudo, os recentes movimentos de lapidação desse princípio em nome de interesses político-religiosos colocam em risco a base da democracia que conhecemos.
A laicidade, que nunca foi sinônimo de hostilidade à fé, mas sim de proteção à liberdade religiosa, está sendo gradualmente erodida por iniciativas que buscam reintroduzir elementos religiosos na estrutura de Estado. Isso, sob o pretexto de valorizar tradições ou resgatar valores morais, compromete a neutralidade estatal e ameaça transformar a democracia em uma arena de privilégios e exclusões, onde direitos fundamentais podem se tornar reféns de crenças específicas.
No campo da educação pública, por exemplo, vemos tentativas de inserir orientações confessionais que desvirtuam o papel da escola como um espaço neutro de formação crítica. Essa interferência impede o pleno desenvolvimento da autonomia moral dos estudantes, comprometendo sua capacidade de pensar e escolher livremente. O que deveria ser um ambiente para a construção do pensamento pluralista acaba sendo moldado em favor de um discurso moral único, que exclui o diverso e limita o direito ao questionamento.
Há uma responsabilidade democrática no compromisso com a laicidade. Esse princípio não apenas regula o distanciamento entre Estado e religião, mas impede que vozes religiosas dominem as decisões públicas, protegendo assim a dignidade dos que professam – ou não – diferentes crenças. A história tem mostrado, repetidamente, que quando o poder político cede à influência religiosa, o respeito ao diverso e o direito à diferença são os primeiros a perecer.
Não podemos fechar os olhos para o crescimento de discursos que colocam a laicidade como algo a ser superado. O perigo da intromissão religioso-política é que ela não se limita à retórica: ela avança em projetos de lei, na estrutura de ensino, nos espaços de decisão pública. A laicidade é a garantia de que o Estado de Direito permaneça um espaço onde o cidadão não é medido por sua fé, mas por sua condição de sujeito de direitos e deveres iguais.
É um dever cívico e moral reafirmar que a laicidade não se trata de rejeição à religião, mas de respeito ao direito de cada cidadão de escolher ou não um credo. A democracia só floresce em um ambiente onde todas as vozes encontram espaço, não porque o Estado favorece alguma, mas precisamente porque ele se mantém equidistante. Regressar a um modelo onde a fé influencia o Estado é um retrocesso perigoso que pode abrir caminho para a intolerância e a discriminação. A laicidade é a linha tênue que separa a liberdade de uma sociedade justa da submissão a doutrinas que servem aos interesses de poucos.
Palmarí H. de Lucena