Quando chegamos a Maputo no verão de 2004, o dia foi marcado pelos funerais de dois parentes de colegas de trabalho. Ambos haviam morrido de “causa desconhecida”, uma espécie de folha de parreira usada na África para esconder o fato que alguém próximo a você havia morrido de AIDS. Lá, a pessoa com a doença sempre morre anonimamente. Um cadáver sem nome, que morre de uma doença sem nome, em algum lugar. Foi assim que começou meu aprendizado sobre a pandemia que estava devastando o país. Ninguém escapava dela, em casa, nas ruas ou no trabalho. Causa desconhecida.
Moravamos no andar superior de uma casa colonial, na esquina de uma rua arborizada com jacarandás. Estavam em flor no dia da mudança. O pórticoera decorado com azulejos trazidos de Portugal, a inscrição “Vila da Alegria” colocada na parede esquerda da entrada. As portas e o assoalho eram de mogno, os moveis simples e funcionais. Um lugar confortável. Foi lá que conhecemos o cozinheiro Vasco, um moçambicano da etnia shangana, de uma magreza sutil até um pouco cômica, com um senso de humor mordaz e uma gargalhada barulhenta, sempre acompanhada por palmas. No primeiro dia, discutimos as responsabilidades, salários, e dias de folga, dele e dos seus colegas. Tudo entendido, tudo “maningue nice”, afirmou com certeza na voz. Ah, um detalhe final, patrão. Hesitou um pouco. Falou bem rápido depois, como se fosse um pregoeiro, “… tenho AIDS, meus colegas são soropositivos, necessitamos de um dia de folga para apanhar nossa medicação na clinica.” O senhor concorda? Respondemos que sim. Apertou a minha mão, contrato assinado.
Notamos um dia que Vasco passava muito tempo limpando a mobília e objetos próximos a porta do nosso quarto. Quando menos esperava, aparecia com uma bandeja sortida de biscoitos da África do Sul, natas portuguesas e café brasileiro. No fim de semana, uma taça de vinho substituía o café. Sempre puxando conversa, como se quisesse saber mais sobre nós ou dizer algo mais sobre ele. Um dia perguntamos, por que você passa tanto tempo aqui, perto do nosso quarto? Não tem nada a fazer no resto da casa? Respondeu calmamente: “… fico por aqui porque gosto da música que o patrão toca… as canções brasileiras são as minhas favoritas porque falam de romance, de amor, porque me fazem sonhar.” Um dia confessou que sua favorita era a canção Outra Vez, de Roberto Carlos.
Você foi! O maior dos meus erros/A mais estranha história/Que alguém já escreveu/E é por essas e outras/Que a minha saudade/Faz lembrar/De tudo outra vez…
Perguntamos um dia: Vasco, qual foi o seu grande erro? Sorriu timidamente, sem responder. Tinha pressa, era dia de apanhar medicação na clinica. E assim convivemos por três meses. Sempre o mesmo ritual, Vasco terminava as tarefas do dia; sentava num banquinho perto da janela; acendia um cigarro e pedia: patrão, toque Outra Vez. E o erro Vasco? Quer mais vinho, patrão, perguntava.
Quando nos despedimos, ficamos um bom tempo em silencio. Falou finalmente com a voz rouca de fumante inveterado, com a tristeza de um homem com pouco tempo pra viver: “… minha ex-mulher morreu jovem; a ex do senhor esta viva, o senhor também… Não reclame da vida, patrão, o céu é mais azul no Brasil.” Partimos assim.
Em 2004, estimava-se que 1,4 milhões moçambicanos já haviam contraído o vírus HIV, com incidência maior nas mulheres. Médicos sobrecarregados pela imensidão da crise, e falta de recursos, eram forçados a decidir diariamente, qual paciente tinha condições de seguir o tratamento com o rigor necessário e melhor aproveitamento das medicações, uma espécie de “escolha de Sofia” sobre quem poderia viver e de quem certamente morreria. O cozinheiro Vasco sobreviveu. Seu erro, causa desconhecida…
Moçambique 2004