A doce música mecânica

Misturando-se sempre no Varadouro, fieis e prostitutas desfrutando o ensolarado dia de descanso. Sempre e nunca aos domingos. Nossa missão: fotografar o Hotel Globo, prédios e casas antigas ao largo da Praça Antenor Navarro e da Rua da Areia. Primeiro projeto do curso de fotografia. Click, click, click. Uma fotografia é muito diferente do que você pensa que fotografou, repetia nosso professor ad nauseam. Seguíamos zelosamente sua orientação.

Paramos diante da antiga fábrica de refrigerantes Doré, na Rua da Areia. Fios elétricos, casas em péssimo estado de conservação, carros estacionados. Cenário pouco propício para uma fotografia de qualidade. Continuamos nossa caminhada na direção do topo da ladeira. Decadência social, cultural e patrimonial nos cercava. Museu ao ar livre, exibição permanente sobre a vida e a morte de uma das áreas mais exclusivas da cidade. Peças e vestígios de abandono e desprezo… entrada franca!

Observamos um objeto metálico e de bom tamanho na calçada de uma casa antiga, próxima ao nosso destino. Decidimos examiná-lo através da teleobjetiva. Miragem urbana, uma linotipo. Fria, enferrujada, velha, abandonada. Fotografias antigas, todas em preto e banco apareceram na memória. Cheiro de tinta e vapores de chumbo no ar. Poucos tinham ideia de para quê servia a geringonça, uma relíquia sem grande importância no mundo globalizado.

Mal lembrávamos que a linotipo fora inventada em 1884 por Ottmar Mergenthaler. Revolucionou o ramo de publicações e a educação. Composição tipográfica rápida e a baixo custo alavancou o crescimento da grande imprensa mundial. Lamentavelmente, também causou o desemprego de mais de trinta e seis mil tipógrafos nos Estados Unidos, em seus primeiros quinze anos. Assim nasceu a profissão de linotipista. Sentados diante de fornalhas, homens suados, olhos fixos em textos, mãos navegando as corredeiras e os perigos do teclado.

Boletim escolar aberto sobre a mesa, anotações revisadas pausadamente. Havíamos chegado a uma junção da adolescência, que tanto temêramos. A hora da verdade: Reprovado. Suor e a vermelhidão no rosto do leitor. Antecipávamos um ano escolar cheio de restrições e vergonha. Frequentaríamos a mesma classe com alunos mais jovens, aqueles que antes menosprezávamos por conta de um ano de diferença de idade. O pior estava por ser anunciado. Trabalharíamos a noite para aprender um oficio, caso nosso desempenho escolar nos levasse ao fracasso acadêmico. Estávamos em plena década dos 50s.

Começamos no jornal como office boy. Entregando textos, fazendo mandados para os redatores e servindo cafezinho. Outro rapaz chamado Biu Ramos, havia sido contratado como datilógrafo da redação. Éramos de Jaguaribe. Datilógrafo! Palavra senha. Biu datilografava textos ditados por redatores. Ouvíamos interruptamente o barulho de metralhadora da máquina Underwood. Cafezinho! Mensageiro! Alguém chamava, sempre alguém. Levava ou trazia algo para os linotipistas. Lembramo-nos quando entramos na sala pela primeira vez. Máquinas vomitando blocos de texto, calor infernal, mesmerizavam-nos. Pura magia. Tabletes de uma nova Babilônia, gravados em metal quente. Passávamos horas na sala das linotipos, seduzidos irremediavelmente pela doce música mecânica…

E a linotipo na calçada? Quantos livros, poemas, crônicas foramproduzidas por ela? Seria a mesma que despertou a nossa paixão?

Palmarí H. de Lucena palmari@gmail.com