A Democracia Não Perdoa Sozinha

A Democracia Não Perdoa Sozinha

Há perdões que não redimem — apenas prolongam o crime. Quando a clemência se estende a quem rasgou a Constituição, tentou subverter as urnas ou marchou contra os pilares de uma república, o que se outorga não é paz, mas licença para que tudo volte a acontecer.

Nos Estados Unidos, o exemplo recente de Jonathan Braun, preso no fim de março por agredir uma criança, é um retrato amargo da impunidade travestida de misericórdia. Braun, beneficiado por Donald Trump com um indulto presidencial em 2021, soma às costas um histórico de agressões, ameaças, assédio e violações que continuaram após a clemência. Ele não é exceção — é parte de um padrão.

Outros perdoados por Trump, como o golpista Eli Weinstein, o líder extremista Enrique Tarrio ou a motorista embriagada Emily Hernandez, não apenas reincidiram, como zombaram da ideia de que o perdão vem acompanhado de arrependimento. Muitos usaram a canetada presidencial como escudo — não para recomeçar, mas para repetir. E o mais grave: vários deles participaram dos ataques ao Capitólio em 6 de janeiro, data que deveria assombrar a democracia americana como um lembrete do quão frágil é a ordem quando desprovida de consequência.

No Brasil, a data é outra: 8 de janeiro. Mas o enredo se assemelha. Aqui também houve vidraças estilhaçadas, cadeiras tombadas, togas vilipendiadas, obras de arte destruídas, bandeiras transformadas em armas — tudo sob o pretexto cínico de “salvar o país”. Os que marcharam sobre Brasília não estavam em busca de diálogo: estavam em campanha contra a própria democracia.

E agora, tal como nos Estados Unidos, cresce entre nós o coro do perdão fácil. Fala-se em anistia, em reconciliação, em passar uma borracha sobre os fatos. Querem nos convencer de que é preciso esquecer para seguir adiante. Mas uma democracia sem memória é como um edifício sem alicerce: bonito por fora, vulnerável por dentro.

Punir não é vingança — é pedagogia. Não se trata de empilhar penas, mas de afirmar princípios. Quem planeja ou executa ataques contra instituições democráticas deve saber que há limites que não se atravessam impunemente. A democracia pode ser generosa, mas não é tola. E tampouco sobrevive se não for capaz de defender-se.

Os que defendem o perdão seletivo, seja em nome da política, da religião ou de um falso pacifismo, esquecem que o que se tenta anistiar é um crime contra todos. Contra o Parlamento, contra o Judiciário, contra a soberania popular. É um crime que não se limita ao dia da destruição — ele se prolonga toda vez que se nega a gravidade do que houve.

Não se constrói conciliação sobre ruínas mal varridas. É preciso restaurar, responsabilizar, punir — e só então, talvez, perdoar. Porque só a justiça precede a paz verdadeira. E porque a democracia, quando não se protege, se apaga.

Palmarí H. de Lucena