A cegueira dos que vêem…

Pingos d’água batendo na janela. Cheiro de chuva na terra, misturado com a maresia oxidante. Tarde preguiçosa. Mundo cinzento na terra do sol. Clima de rêverie. Viajando ajudado pela natureza. O passado é hoje. Pensaremos no futuro depois, amanhã quando a luz voltar…

Telefone tocando insistentemente. Contagem progressiva. Um, dois, três, quatro… Pronto, respondemos. Ouvimos uma voz metálica de telemarqueteira. Pronunciando prenome e sobrenomes, com a cadência e sotaque de nuveau nordestino. Soavam como originários de um lugar estranho, fora do sistema solar. Ouvimos sem interesse. Respondendo a todas as perguntas monossílabicamente. Termine logo, pensávamos, queremos voltar à viagem. Completou todas as formalidades legais. Chegamos finalmente ao assunto. O Instituto dos Cegos da Paraíba estava em perigo de fechar as portas, devido à falta de recursos financeiros. Política do governo enfatizava a inclusão de deficientes visuais na escola pública. Lei das conseqüências inesperadas. Fatos e números citados em rápida sucessão. Tim-tim por tim-tim. Resumo: a criação de Dona Adalgisa Cunha encontrava-se em perigo de extinção, sessenta e seis anos após seu nascimento. Mundo vidente. Cegos enxergavam a imensidão da perda. Concluída a conversa. Chamariam mais tarde para confirmar uma doação.

Saramago bailava na nossa consciência: “É assim que os homens verdadeiramente são? É preciso cegarem-se todos para que enxerguemos a essência de cada um?”

Voltamos à viagem. Tenente Lucena ensaiando o Orfeon do Instituto dos Cegos. Regendo. Olhos dos cantores perdidos no infinito. Corpos seguindo a música, com movimentos laterais. Metrônomos humanos. Sorriam.

Mensagem eletrônica recebida do México, cinco anos atrás, mais lembranças. Linguagem sucinta e direta. Carta apressada, escrita por uma pessoa jovem. Falava de uma nova descoberta. Olhos que sentiam…

Visitante estrangeiro a procura de um lugar para jantar, próximo ao hotel. Deparou-se com um restaurante, a entrada lembrava um teatro ou recepção. Tapete vermelho; área de acesso limitado para fotógrafos; pessoas com pranchetas nas mãos. Não se surpreenderia se a qualquer momento, alguém aparecesse com uma claquete, gritando, ação! Homem com câmera na mão ofereceu-se para fotografá-lo. Não, agradeceu. Entrou. Percebeu que a sala estava em quase total escuridão. Um grupo de fotógrafos cegos, o evento chamava-se “Ceia na Escuridão”, patrocinada por uma organização não-governamental, “Ojos que Sienten”. Conduzido a uma mesa cheia de estranhos, sendo servidos por garçons cegos. Os videntes tinham dificuldade em enxergar seus pratos, talheres…

Encerrada a ceia. O fotógrafo tocou no corpo do visitante. Sentindo a textura da roupa, tomando medidas mentalmente, escolhendo a melhor posição para a foto. Flash, flash, flash. Fotos tiradas em rápida sucessão. Vertical e horizontal. Criando na mente a foto ou situação que queriam fotografar. Processos mentais formando imagens através dos outros sentidos. Não podiam ver as fotografias, porém tinham conhecimento completo do que captavam. Seguiu para uma mostra fotográfica e leilão. Videntes contemplando as criações de olhos que sentiam o mundo na escuridão. Sensibilizando a sociedade por meio de experiências artísticas e sensoriais…

Visitamos virtualmente a organização “Ojos que Sienten”. Deparamos-nos com uma organização eficaz, enfocada e independente do poder público. Apoiada financeira e materialmente por programas de responsabilidade social empresarial, doações individuais e de organizações da sociedade civil mexicana. Associativismo de pessoas com deficiências visuais, combatendo estereótipos, preconceitos e promovendo inclusão social através de capacitação e “ceias na escuridão”. Fazendo o mundo enxergar…

Pensamos em Saramago. “Nós estamos todos cegos. Cegos da razão. A razão não se comporta racionalmente, o que é uma forma de cegueira.”

Talvez nossos olhos vejam um dia os olhos que sentem…

João Pessoa 2010